*Guilherme Luiz Meotti

Os crimes descritos no ordenamento jurídico penal brasileiro podem ser processados a partir de três realidades distintas: mediante ação penal pública incondicionada à representação; ação penal pública condicionada à representação da vítima ou à requisição do Ministro da Justiça; e ação penal privada.

Trata-se, em verdade, de uma escolha do legislador com base em políticas criminais.

Recentemente, com o advento da Lei Federal n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o crime de estelionato (artigo 171 do Código Penal) passou a ser processado mediante a representação da vítima, pelo prazo de 06 (seis) meses, sob pena de decadência (perda do direito de ingressar com a ação).

Em linhas práticas, o que antes era de incumbência irrestrita do Ministério Público (ou seja, de ação penal pública incondicionada), passou a ser regida pela vontade da vítima em querer ver o autor do fato processado pelo crime em questão. Não basta mais apenas a notícia da ocorrência do delito, mas sim a representação formal da vítima contra o noticiado à Autoridade competente.

Nada obstante, esta nova vontade do Poder Legislativo abarcada pelo “Pacote Anticrime” traz à tona diversas discussões de naturezas material e processual, como, por exemplo, a retroatividade da norma penal.

Neste sentido, sabe-se que sempre em que houver uma legislação mais benéfica em favor do réu, esta deverá retroagir para alcançar fatos posteriores a sua promulgação (inteligência do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal de 1988).

Esta orientação constitucional ainda encontra resistência de acordo com a natureza da norma recém criada. Ou seja, se a norma em questão for de natureza penal, esta deverá retroagir em benefício do réu, desde que mais benéfica (artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal). Caso a norma seja de natureza processual, em razão da inexistência de previsão legal, não há que se falar automaticamente em retroatividade.

Logo, o cerne desta questão reside na seguinte pergunta: o parágrafo 5º, do artigo 171, do Código Penal introduzido pela Lei Federal n. 13.964/2019 é norma de natureza penal ou processual?

De acordo com o recente entendimento do E. Superior Tribunal de Justiça no âmbito do Habeas Corpus n. 583837, trata-se de norma cuja natureza jurídica é revestida de caráter misto, tanto penal, quanto processual penal. Confira-se:

HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PACOTE ANTICRIME. LEI N. 13.964/2019. § 5º DO ART. 171 DO CP. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO COMO REGRA. NOVA LEI MAIS BENÉFICA. RETROATIVIDADE. ART. 5º, XL, DA CF. APLICAÇÃO DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/1995 POR ANALOGIA. 1. As normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes do Código de Processo Penal, são de natureza mista, regidas pelos cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva. 2. O processo penal tutela dois direitos de natureza pública: tanto os direitos fundamentais do acusado, voltados para a liberdade, quanto a pretensão punitiva. Não interessa ao Estado punir inocentes, tampouco absolver culpados, embora essa última solução se afigure menos danosa. 3. Não é possível conferir a essa norma, que inseriu condição de procedibilidade, um efeito de extinção de punibilidade, quando claramente o legislador não o pretendeu. 4. A retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal. Aplicação do art. 91 da Lei n. 9.099/1995 por analogia. 5. O ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do art. 5º da Constituição Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão. 6. Ordem parcialmente concedida, confirmando-se a liminar, para determinar a aplicação retroativa do § 5º do art. 171 do Código Penal, inserido pela Lei n 13.964/2019, devendo ser a vítima intimada para manifestar interesse na continuação da persecução penal em 30 dias, sob pena de decadência, em aplicação analógica do art 91 da Lei n. 9.099/1995.  (STJ – Habeas Corpus n. 583837. RELATOR: MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR. Julgado em 04 de agosto de 2020).

No entanto, consoante o voto do Ministro Relator, o Exmo. Sr. Dr. Sebastião Reis Júnior, mesmo que se confira o caráter de retroatividade da norma em favor do réu, esta não poderá ser interpretada como hipótese de “abolitio criminis”.

Já no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o entendimento é de que a retroatividade do parágrafo 5º, do artigo 171, do Código Penal, não deve ser aplicada para as hipóteses em que o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da lei 13.964/19:

“HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA A PARTIR DA LEI N. 13.964/19 (“PACOTE ANTICRIME”). IRRETROATIVIDADE NAS HIPÓTESES DE OFERECIMENTO DA DENÚNICA JÁ REALIZADO. PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA LEGALIDADE QUE DIRECIONAM A INTERPRETAÇÃO DA DISCIPLINA LEGAL APLICÁVEL. ATO JURÍDICO PERFEITO QUE OBSTACULIZA A INTERRUPÇÃO DA AÇÃO. AUSÊNCIA DE NORMA ESPECIAL A PREVER A NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO SUPERVENIENTE. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. HABEAS CORPUS INDEFERIDO. 1. Excepcionalmente, em face da singularidade da matéria, e de sua relevância, bem como da multiplicidade de habeas corpus sobre o mesmo tema e a necessidade de sua definição pela PRIMEIRA TURMA, fica superada a Súmula 691 e conhecida a presente impetração. 2. Em face da natureza mista (penal/processual) da norma prevista no §5º do artigo 171 do Código Penal, sua aplicação retroativa será obrigatória em todas as hipóteses onde ainda não tiver sido oferecida a denúncia pelo Ministério Público, independentemente do momento da prática da infração penal, nos termos do artigo 2º, do Código de Processo Penal, por tratar-se de verdadeira “condição de procedibilidade da ação penal” . 3 Inaplicável a retroatividade do §5º do artigo 171 do Código Penal, às hipóteses onde o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da Lei 13964/19; uma vez que, naquele momento a norma processual em vigor definia a ação para o delito de estelionato como pública incondicionada, não exigindo qualquer condição de procedibilidade para a instauração da persecução penal em juízo. 4.A nova legislação não prevê a manifestação da vítima como condição de prosseguibilidade quando já oferecida a denúncia pelo Ministério Público. 5. Inexistente, no caso concreto, de ilegalidade, constrangimento ilegal ou teratologia apta a justificar a excepcional concessão de Habeas Corpus. INDEFERIMENTO da ordem.” (STF – Habeas Corpus n 187.341. RELATOR: MIN. ALEXANDRE DE MORAES. Julgado em 13 de outubro de 2020).

Haja vista a duplicidade de interpretação acerca da natureza jurídica da exigência de representação da vítima no crime de estelionato, o momento exige prudência dos atores processuais, em especial da vítima que, diante da incerteza, deve exercer o seu direito de representação para não arcar com o ônus de um futuro reconhecimento da decadência em seu desfavor.

*O autor é advogado no escritório Accioly, Laufer Sociedade de Advogados. Bacharel em Direito pela PUCPR. Especialista em Processo Penal pelo IBCCRIM – IDPEE Coimbra – Portugal. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM. 


DESTAQUE

Nova normativa Radar atualiza comércio exterior 

A desburocratização do setor aduaneiro segue em curso no Brasil, e com isso surgem algumas boas notícias no fim de ano. Nesse contexto estão as atualizações na normativa do Sistema Ambiente de Registro e Rastreamento da Atuação dos Intervenientes Aduaneiros (Radar) do Siscomex na Receita Federal, o que deve facilitar os processos de importação e exportação.

Entre as principais mudanças está o prazo de validade do cadastro no Radar. Anteriormente, caso o importador/exportador interrompesse suas atividades por seis meses, perderia a habilitação e seria necessário dar início a um novo pedido. Agora, o novo intervalo é de 12 meses, o que significa que é possível não realizar operações por até um ano, sem com isso perder a habilitação.

“Caso o prazo de 12 meses sem operações transcorra e o declarante perca a sua habilitação, ele poderá solicitá-la de forma automática por meio do sistema Habilita”, explica o advogado Maximilian Eriksson Andersen Ballão, do Departamento Aduaneiro e Paralegal da Andersen Ballão Advocacia. “Porém, se a habilitação não ocorrer de forma automática, será necessário abrir um processo via dossiê digital com a documentação comprobatória adequada, nos termos da IN/RFB n. 1984/2020.”

Outra importante modificação está no rol de documentos básicos para a abertura do pedido de Revisão de Estimativas.

E para garantir o funcionamento adequado das transações comerciais, é preciso ter algumas precauções. Em primeiro lugar, buscar o correto enquadramento:  habilitação expressa, limitada e ilimitada. “É importante saber quais são os declarantes que podem solicitar a habilitação no comércio exterior, podendo ser pessoas jurídicas de direito privado, órgãos da administração pública direta, autarquias, ou as demais entidades numeradas no art. 4º, §2º da IN/RFB nº 1984/2020, inclusive Microempreendedores Individuais (MEI).”

Tomando todas as medidas preventivas para seguir os processos atualizados, importadores e exportadores verão seus negócios em comércio exterior fluírem melhor, sempre com a consultoria adequada em casos de necessidade. 


PAINEL JURÍDICO

 

Servidor

É inconstitucional aproveitar o servidor concursado para exercer cargo que exige ensino médio em cargo que tenha como pré-requisito escolaridade superior.  O entendimento é do Plenário virtual do STF.

Discriminação

Uma empresa de cosméticos deverá indenizar uma mulher transexual por causa uma propaganda publicitária que ilustrava uma transexual usando um mictório masculino com o slogan “pirataria é crime”. O juiz da 35º Vara Cível de São Paulo considerou a campanha abusiva e discriminatória, com base no CDC.

Mandado de Segurança

Mandado de segurança coletivo impetrado por associação não exige autorização expressa de filiados. O entendimento é do STF.

Multas

Motorista que não comunica venda de carro junto ao órgão de trânsito é responsável pelas multas do veículo. O entendimento é da 5ª Câmara de Direito Público do TJ de São Paulo. 


DIREITO SUMULAR

Súmula 614 do STJ – O locatário não possui legitimidade ativa para discutir a relação jurídico-tributária de IPTU e de taxas referentes ao imóvel alugado nem para repetir indébito desses tributos. 


LIVRO DA SEMANA

A presente obra aborda o regime jurídico constitucional e disciplinar dos militares brasileiros, enfatizando o dos militares estaduais, no qual se apresenta a regulamentação constitucional da atividade militar e os princípios fundamentais sob os quais se organizam as instituições militares e o regime disciplinar a que estão submetidos os servidores públicos militares. Discorre também sobre o regime jurídico do processo administrativo disciplinar militar de modo a apresentar os seus fundamentos e aspectos conceituais. Por fim, expõe uma análise dos processos disciplinares no âmbito da polícia militar e do corpo de bombeiros militar à luz do princípio do devido processo legal, para se verificar a observância dessa cláusula constitucional na realização das modalidades processuais militares.