Um destruidor de regras. Assim pode ser classificado o psiquiatra Flávio Gikovate, de 63 anos – 40 deles dedicados à profissão. Especialista em questões amorosas, com mais de 20 livros publicados e cerca de sete mil pacientes atendidos, ele não ficou satisfeito em dizer, na década de 1970, que sexo e amor eram coisas completamente diferentes. Agora, Gikovate assegura que aquela velha história de que os opostos se atraem é uma invenção.


Inclusive, em seu livro mais recente – “O Mal, o Bem e Mais Além”, da MG Editores -, ele sustenta que só as pessoas com afinidades podem levar um relacionamento de longa duração. Esse seu conceito é exemplificado pela sua própria vida pessoal. “O meu primeiro casamento foi por opostos. Eu me separei e me casei de novo, com uma mulher extremamente real, crescida e do meu jeito. É o sapato para o pé. Estou casado há 30 anos e não tive problema algum. Vai durar até que a morte nos separe”, conta.


Por meio dessa teoria, Gikovate quebra outro dogma, ao garantir que, em um relacionamento, não se fazem concessões. Segundo o médico, aquela idéia de “quem ama concede” é um tremendo engano. “Abrir mão de alguma coisa é abrir mão da liberdade”, diz. Foi para aprofundar esses temas que o psiquiatra concedeu entrevista de uma hora em seu consultório, no Jardim América, na zona sul de São Paulo, para a Agência Estado.


AGÊNCIA ESTADO – O senhor costuma dissociar amor de sexo. Isso ainda gera muita polêmica?


FLÁVIO GIKOVATE – Sexo e amor, para mim, são duas coisas completamente diferentes. O amor é uma coisa que busca mais aconchego. É algo cuja presença da pessoa provoca a sensação de paz e serenidade. O sexo é uma excitação que, às vezes, nem depende da presença de alguém. A criança adquire a sexualidade tocando em si mesma. As primeiras manifestações sexuais são auto-eróticas, ou seja, a criança com ela mesma, e as primeiras manifestações amorosas são da criança com a mãe. A criança sente aconchego no colo da mãe.


AGÊNCIA ESTADO – Seus estudos sobre as questões ligadas à sexualidade e aos relacionamentos começaram na década de 1960. Quais foram suas principais descobertas?


FLÁVIO GIKOVATE – Avancei muito no entendimento do fenômeno amoroso. Desde então, venho divulgando todas as formas de amar, porque, na minha cabeça, é muito importante que as pessoas se unam com parceiros afins, ou seja, com pessoas parecidas. Não por opostos, que sempre foi referência ao longo dos anos. No passado, valia a idéia “dois bicudos não se beijam”.Quer dizer, num relacionamento, um tinha sempre de ser bicudo, e o outro, sem bico. Era a questão dos opostos. E eu brigava desde 1976, 1977, para sustentar que o casamento deve ser por afinidade. O que é óbvio, mas, apesar disso, continua a prevalecer o ditado popular. Hoje, fala-se em “alma gêmea”. Mas só o discurso mudou. A prática continua a mesma.


AGÊNCIA ESTADO – Por que o discurso mudou?


FLÁVIO GIKOVATE – Porque as pessoas estão de saco cheio dessas diferenças. A mesma relação que determina o casamento determina o divórcio. Encanta-se pelo oposto e irrita-se pelo oposto. Quanto maior a convergência, maior a facilidade de convívio e a estabilidade. Mas a questão da alma gêmea só corresponde a 5% dos relacionamentos. A grande maioria dos casamentos continua se dando entre opostos, e as pessoas continuam tendo as chamadas brigas normais dos casais, que não são normais. Casal que se dá bem não briga jamais. Casal que se dá bem tem divergência de opiniões, negocia e conversa, mas não briga. Brigar é coisa de grosso.


AGÊNCIA ESTADO – É isso o que o senhor diz sobre os opostos – os generosos e os egoístas – em seus livros?


FLÁVIO GIKOVATE – Na relação generoso/egoísta, o primeiro dá, e o segundo explora. São opostos. Isso perpetua os comportamentos equivocados. A solidão é muito evolutiva nesse ponto. A ordem evolutiva seria o egoísta, o generoso e o justo. Só que o justo não é o meio-termo entre os dois. Ou seja, o egoísta não tolera frustração, o generoso não tolera a culpa, e o justo tolera a frustração e não morre de culpa.


AGÊNCIA ESTADO – E por que o ser humano tem essa “necessidade” de sempre procurar no outro aquilo que não possui?


FLÁVIO GIKOVATE – O ser humano tem uma sensação de incompletude. Nunca se sente completo. Ele busca, na verdade, completar-se no outro. E é justamente nisso que pesa um parceiro. Se nós nos sentíssemos completos em nós mesmos, não existiria o amor.


AGÊNCIA ESTADO – É por isso que o senhor fala que o amor é um vício?


FLÁVIO GIKOVATE – É por isso que ele pode transformar-se em um vício. Porque o ser humano tem uma dependência do outro. Agora, nas relações de boa qualidade, vício não é uma palavra que deve ser vista tão assustadoramente. O mais grave não é o vício, é o malefício. Eu fumei por 35 anos. Não parei de fumar por causa do vício. Parei por causa do malefício. Ou seja, o vício não é obrigatoriamente uma coisa ruim. O vício é ruim quando ele provoca uma sensação de incompletude, de insaciabilidade. Não é só o malefício. Ele causa uma dependência muito forte. No amor, também existe dependência. Tudo isso vem de você achar que não pode viver sem outro. Quanto mais você for capaz de se imaginar sozinho, mesmo que incompleto, mais será capaz de estabelecer uma relação de melhor qualidade. Essas relações dependem de maturidade emocional. Aí, o outro não se torna vício. Vira só um hábito. Há uma diferença entre hábito e vício. O hábito é uma coisa que você pode ficar sem; o vício, não.


AGÊNCIA ESTADO – O senhor tem um conceito diferenciado de liberdade. Qual é?


FLÁVIO GIKOVATE – A liberdade, como eu vejo, é você agir de uma forma coerente com seus pensamentos. Coerência entre pensamento e conduta. Esse é o conceito de liberdade para mim. E, portanto, não existe apenas um jeito de ser livre. Cada pessoa tem seus pensamentos e, se ela age coerentemente com seus pensamentos, é livre.


AGÊNCIA ESTADO – E como isso funciona dentro de um relacionamento?


FLÁVIO GIKOVATE – Nas questões sentimentais, para você poder ser livre, coerente com suas condutas, você tem de ter uma afinidade muito grande com o parceiro. É preciso que os parceiros tenham pontos de vista parecidos, senão um dos dois vai ter de abrir mão de alguma coisa. Eu não sou um grande admirador das concessões. A idéia da concessão é algo que quebra a liberdade. O indivíduo que concede vai ter de agir de forma diferente da que ele pensa. Eu sou muito mais amigo do respeito às diferenças Quando há diferença entre o meu modo de ser e o da minha mulher cada um, se possível, funciona do seu jeito. Se ela gosta de certos tipos de programas sociais ou culturais, mas eu não gosto ela vai, e eu não vou.


AGÊNCIA ESTADO – Mas, às vezes, não acontece de a pessoa querer acompanhar quando a outra não quer ser acompanhada?


FLÁVIO GIKOVATE – A concessão tem de ser mínima, porque mexe com a questão da liberdade. Aí está a vantagem de você ter um parceiro parecido. O número de vezes que esse problema vai acontecer é pequeno. Quanto menores forem as concessões, mais próximo da liberdade fica o indivíduo.


AGÊNCIA ESTADO – Durante essa conversa, o senhor já quebrou, pelo menos, duas “regrinhas” de relacionamento…


FLÁVIO GIKOVATE – Quebrei também essa coisa da união entre sexo e amor. Sabe por que eu falo isso? Porque muitos casais que se amam intensamente tem problemas na área sexual, principalmente no início. E essa é uma das razões que causam o encantamento entre opostos. Às vezes, o tesão por uma pessoa menos confiável, por exemplo, é maior do que por uma mulher leal. Parece que, quando a mulher é leal, legal, ela é menos emocionante sexualmente. Isso é complicado. Mas casar com uma mulher não-confiável é dar um tiro na cabeça.


AGÊNCIA ESTADO – Qual o perfil dos relacionamentos hoje em dia?


FLÁVIO GIKOVATE – Na verdade, mudou pouco. O individualismo está crescendo. Está cada vez mais claro para as pessoas a questão do individualismo, que, aliás, não é sinônimo de egoísmo. O individualista é a pessoa que não quer fazer muitas concessões. Se ele for respeitoso em relação ao individualismo do outro também, tudo bem. Mesmo havendo grandes afinidades de caráter, sempre existirão diferenças.


AGÊNCIA ESTADO – O senhor fala da importância da solidão. Mas não é disso que as pessoas fogem?


FLÁVIO GIKOVATE – Quando a pessoa fica razoavelmente bem sozinha significa que já domesticou um pouco a sensação de incompletude Quem convive melhor sozinho ganha competência para estabelecer uma relação afetiva de melhor qualidade, já que aprendeu a lidar minimamente, com suas próprias mazelas pessoais e passou a cobrar menos do outro. Quando as pessoas que rompem um relacionamento sofrem muito, é porque se reencontram com sua sensação de incompletude, que já existia antes da presença daquela pessoa. Ao passarem um tempo sozinhos, perdem o medo do desconforto e estabelecem uma relação de menos dependência. No amor do século 21, que eu chamo de “+ amor”, a pessoa tem de preencher três expectativas ao mesmo tempo: ser uma pessoa confiável, para poder apresentar um aconchego; ser uma pessoa intelectualmente legal, para poder conversar, ter planos, projetos e poder trocar idéias – algo muito parecido com a amizade; e ser uma parceira sexual.