No sentido técnico, é possível destacar três pontos do Projeto de Lei 7.596/2017, a chamada Lei de Abuso de Autoridade, que devem criar dificuldades para operacionalização da Justiça Criminal Brasileira: os artigos 27, 30 e 31.
O artigo 27 diz: “Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”. O que está sendo dito, em outras palavras, é: não é possível iniciar uma investigação se não houver um indício da prática de crime. Só que, no artigo 239 do Código de Processo Penal Brasileiro, existe um conceito de que indício é circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, permite induzir ou deduzir algo. Nos termos do novo artigo, será pressuposto que se tenha uma prova para se iniciar uma investigação. Isso é quase um contrassenso. A nova lei gerará impactos negativos, por exemplo, na proteção de mulheres em sede de violência doméstica, que procuram o Estado para noticiar que estão sendo ameaçadas pelos companheiros. Sem o indício, só com a notícia do delito, não poderá ser feito nada. Vai gerar uma espécie de paradoxo: só se pode iniciar uma investigação se já houver uma prova, só que muitas vezes se depende da investigação para se coletar tal prova. Como fica?

O artigo 30, de certa forma, se sobrepõe e repete o teor do artigo 27, colocando o seguinte: “É crime dar início ou proceder a persecução penal, civil ou administrativa, sem justa causa fundamentada ou contra quem se sabe inocente”. “Justa causa” é um conceito técnico que significa avaliar se há um conjunto de elementos probatórios preliminares que sustentem um fato que se vai imputar ao réu numa denúncia. “Denúncia”, por sua vez, é petição inicial que materializa o exercício da “ação penal” promovida pelo Ministério Público e que dará início um “processo”. Já a expressão “persecução penal”, que aparece no tipo penal criado agora, é um conceito mais amplo, englobando tanto a investigação quanto o exercício da ação e o respectivo processo. Aqui se vê uma bagunça técnica do legislador. Ele está exigindo justa causa para que se inicie uma “persecução penal” e não uma “ação penal” que daria início a um “processo”. Então, agora seria preciso ter justa causa para iniciar a investigação? Então cria um paradoxo de novo.

Outro artigo é o 31 que diz que: “Passa a ser crime estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a, em prejuízo do investigado ou fiscalizado”. Como assim “estender injustificadamente a investigação”? A lei prevê prazos de controle da investigação de 30 em 30 dias, permitindo a renovação do prazo sempre que o caso for considerado de “difícil elucidação” e o investigado estiver solto, mas também prevê prazos prescricionais para o exercício de uma pretensão punitiva. Enquanto não estiver prescrito um crime pode seguir sendo investigado. Existe uma tabela no Código Penal que nos diz que temos um tempo para investigar, que é o tempo da prescrição que é contado da data do crime até o recebimento da denúncia, ocasião em que ele se renova. Hoje basta que não se tenha as condições da ação ou as informações necessárias para preencher os pressupostos de validade da denúncia para que seja possível ainda seguir investigando. O que se interpretará a partir daqui?

E mais do que isso. É preciso compreender a realidade da justiça criminal brasileira, desde sempre sucateada. O novo tipo penal põe em risco os cargos de delegados, promotores e juízes, que têm, em cotidiano, um universo gigantesco de procedimentos criminais aos seus cuidados. A estrutura não dá – nunca deu – conta do volume de serviço. A nova lei exige que se analise investigação por investigação e se justifique se teria ou não uma razão adicional para prorrogá-la passados 30 dias, para além do que dizem os prazos prescricionais hoje. Então, fica óbvio que esse projeto de lei é direcionado a punir juízes, promotores e delegados. No início da lei, até pode haver menção de que parlamentares também seriam atingidos, mas, lendo a lei com maior atenção, é possível constatar que não há nenhum tipo específico de punição a eles.

Ninguém é contra a necessidade de uma atualização da lei de abuso de autoridade. Mas quando percebemos que a lei é única e exclusivamente voltada para Polícia, Ministério Público e Judiciário, não havendo sequer uma figura penal que se encaixe em possíveis abusos da classe política, a única conclusão a que podemos chegar é que ela não pode ser sancionada na íntegra. Uma lei aprovada a toque de caixa, sem votação nominal, aproveitando uma situação de momento episódico, em que o congresso se sentia livre, sem muita pressão para votar, é sintomático do momento que estamos vivendo. Esse projeto precisa, portanto, ser rediscutido pela sociedade, para que possamos, de fato, aperfeiçoar a punição ao abuso de autoridade.

Rodrigo Régnier Chemim Guimarães é procurador de Justiça, professor do Unicuritiba e da FAE, doutor em Direito de Estado pela UFPR