SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Para ajudar a enfraquecer a ditadura de Cuba, o presidente Jair Bolsonaro ajuda mais ao não se envolver, pois suas posições em temas como direitos da mulher e racismo poderiam gerar problemas, defende o líder opositor e historiador cubano Manuel Cuesta.


“Em comparação com os governos anteriores do Brasil, que criaram uma rede de solidariedade ao governo cubano, Bolsonaro é interessante pelo que não faz”, diz Cuesta, porta-voz do partido não reconhecido Arco Progressista e coordenador da plataforma Novo País, ambas iniciativas dissidentes de Cuba.


“Não creio que ele seria útil se agir de forma proativa, porque Bolsonaro trata negativamente de temas muito sensíveis em Cuba, como a questão racial, os direitos da mulher e a liberdade de imprensa”, prossegue.


Bolsonaro citou em discursos sua intenção de combater o socialismo, regime vigente em Cuba. O país é governado por uma ditadura, liderada por Miguel Díaz-Canel desde abril de 2018. O país aprovou uma nova Constituição em fevereiro, que reafirmou o modelo socialista.


Manuel Cuesta Morúa, 56, é historiador formado pela Universidade de Havana. Ele foi destituído do emprego em um museu público por questões políticas em 1991. Desde então, Cuesta participa da oposição ao regime. Em 2002, fundou o partido Arco Progressista.


Cuesta conversou com a reportagem São Paulo, onde participou de um seminário da Fundação FHC.


Pergunta – O governo de Jair Bolsonaro pode ajudar a oposição de Cuba?


Manuel Cuesta – Pode ser útil pelo que não faz. Em comparação com os governos anteriores, que criavam uma rede de solidariedade no Brasil e na América Latina, Bolsonaro me parece interessante pelo que não faz, o que nos ajuda.


Mas não creio que seria útil se agir de forma proativa, porque, até onde leio, Bolsonaro trata negativamente de temas muito sensíveis em Cuba, como a questão racial, os direitos da mulher e a liberdade de imprensa, nos quais as posições de Bolsonaro geram conflito em determinados ambientes. Portanto, preferiria que ele fique sem fazer nada. Não mostrar que o Brasil apoia o governo cubano é suficiente para ajudar aos democratas em Cuba.


P – A saída dos médicos cubanos do Brasil trouxe problemas ao regime?


MC – Foi um golpe duro, por mostrar que a exportação de médicos não segue as regras de mercado, e só são feitas quando há uma aliança ideológica. Assim, são algo precário, pois uma mudança de governo pode afetar o ganho que o governo terá. Com o rum e o tabaco não é assim. Independentemente do governo, os países seguem importando esses produtos.


O governo cubano sempre usou suas missões para obter benefícios políticos e ajudar aliados. Na Bolívia, houve uma missão de professores para alfabetizar. Quando se olhava os livros e materiais, todos tinham conteúdo de apoio a Evo Morales.


​P – Como o governo de Díaz-Canel tem lidado com os opositores?


MC – Desde que assumiu, a oposição tem sido alvo de mais hostilidade. Há poucos dias, prenderam vários ativistas, incluindo três mulheres. Duas foram condenadas a três anos de prisão, e a outra, a um ano. Deveríamos ter uma situação mais fácil, pois a nova Constituição reconhece um pouco mais de direitos aos exercícios de manifestação, de reunião e de expressão. No entanto, o governo segue sendo muito duro.


P – As detenções temporárias continuam?


MC – Sim. As chamadas detenções ‘express’ são feitas para evitar a solidariedade internacional. Se você me prende agora e solta em meia hora, os meios de comunicação não dão muita importância. Há também aumento da repressão física, inclusive a idosos. Golpes físicos estavam ficando para trás, mas estão voltando.


P – Por que este endurecimento?


MC – Díaz-Canel não tem legitimidade. Não é um presidente eleito nem um comandante da Revolução [Cubana]. Isso enfraquece sua legitimidade e faz com que ele precise reforçar-se frente à sociedade. O segundo ponto é a relação com a Venezuela. O governo teme que os cidadãos em Cuba também se sintam empoderados e possam desafiar o presidente.


P – Como avalia Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente da Venezuela?


MC – Nunca se havia visto uma situação deste tipo, com duas autoridades em um mesmo país. A estratégia é boa e legítima. No entanto, se criou uma expectativa de que ia ser uma mudança rápida e que iria se quebrar o apoio dos militares a Maduro, o que não ocorreu.


É importante que Guaidó siga construindo apoio interno e ações efetivas que mostrem que ele tem poder e é capaz de gerar benefícios concretos aos cidadãos. Sem isso, vai se desgastar. O fato de Guaidó ter saído e voltado à Venezuela, mesmo com uma ordem judicial de proibição, mostra a debilidade do regime.


P – Poderia surgir um Guaidó em Cuba?


MC – Não saberia dizer. Há um pensamento claro em determinado setor da oposição de dar passos atrevidos, sobretudo em relação a eleições livres, para propiciar uma quebra simbólica do regime, de modo que depois isso tenha impacto na realidade e possa-se ir construindo a transição democrática. Isso requer uma iniciativa parecida à de Guaidó, que não pode ser exatamente a mesma.


P – Qual o impacto que a saída de Maduro teria para Cuba?


MC – Se Cuba for o único país restante na região com uma certa visão da democracia e da política, isso a isolaria demais e reduziria sua legitimidade externa. A existência de governos como o de Maduro, de Evo Morales na Bolívia e de Daniel Ortega na Nicarágua, dá a Cuba certa legitimidade ideológica na região.


P – E a perda econômica?


MC – Seria grande. Dizem que a Venezuela segue dando 35 mil barris de petróleo quase diários ao governo cubano, quase de presente. O governo cubano segue sem liquidez para pagar. Já se sabe que autoridades cubanas têm viajado a outros lugares para buscar uma substituição no abastecimento. Foram à Argélia, ao Catar. Não se sabe o resultado, mas indica que o governo está se mexendo.


P – O presidente dos EUA, Donald Trump, possui uma posição contrária ao governo cubano mais forte do que Obama. Que efeitos isso trouxe?


MC – A política de Trump tem feito mal ao governo cubano e aos cidadãos. Não estou convencido de que esta política seja mais eficaz para pressionar por mudanças democráticas. Trump optou por um caminho errático. No início, se pensava que era preciso uma ação mais forte em relação ao governo cubano, porque ele havia usado os gestos de Obama para se fortalecer. Hoje, muitos se dão conta de que o modelo de Obama era mais apropriado. Para nós, não houve ganhos [com Trump], mas para algumas empresas, sim, sobretudo aquelas ligadas ao turismo.


P – Quais os planos da oposição cubana?


MC – Estamos mobilizando uma proposta chamada 2020, que une iniciativas constitucionais e legais, porque acreditamos que uma possibilidade de mudança política é apelar às instituições e usá-lad em favor dos cidadãos.


PC – O aumento do acesso à internet tem ajudado a engajar mais as pessoas?


MC – Sim. No início, as pessoas usavam a internet para conversas privadas. Na medida em que o acesso se estabiliza, começa-se a gerar outras demandas, como de abertura política. Se eu vejo que você compartilha nas redes uma mesma opinião que eu, isso te dá mais segurança para dar um passo político. E a combinação entre segurança coletiva e a informação diversificada oferecida pela internet faz com que os cubanos façam mais demandas políticas. Há uma relação bastante direta entre isso e o fato de que, pela primeira vez em Cuba, uma minoria votou contra o governo cubano, no referendo [sobre a nova Constituição].


P – Há medo de que o governo monitore as redes?


MC – Há setores nos quais as pessoas ainda têm medo, mas ele vai se perdendo aos poucos. Em um país de controle absoluto, o fato de que mais de 1.2 milhão de cubanos não foram votar no dia 24 de fevereiro indica uma ruptura do medo, porque uma pessoa fica mais marcada com o governo ao não ir votar do que ao ir a um protesto usando uma máscara, por exemplo. É uma forma de dizer “não confio em você e não vou participar do seu processo eleitoral”.