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Num momento de pico da pandemia do novo coronavírus, com explosão no número de casos de Covid-19 e recorde de mortes no Paraná, uma polêmica que dominou grande parte dos noticiários em 2020 voltou a ganhar força. Nos últimos dias, grupos de médicos e empresários curitibanos passaram a defender publicamente o tratamento precoce contra a doença como forma de desafogar os hospitais e reduzir o nível de óbitos causados pela enfermidade, a despeito da inexistência de comprovação científica com relação à eficácia de medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina ou azitromicina.

Uma das ações que mais chamou a atenção foi a instalação de dez outdoors pela cidade na última segunda-feira, custeados pelo grupo “Médicos pela Vida”, que reúne profissionais de diferentes especialidades da área médica e também pessoas de outras áreas. A publicidade, que trazia a imagem de um profissional da linha de frente de enfrentamento à pandemia em destaque num dos cantos da peça, continha ainda os dizeres “não dê chance à Covid-19. O tratamento precoce salva vidas”.

Não demorou para que os outdoors fossem retirados por ordem da Prefeitura de Curitiba, em decisão que atendeu ofício da Promotoria de Justiça de Proteção à Saúde Pública de Curitiba, do Ministério Público (MP-PR). No documento, o MP argumenta que não há comprovação científica sofre a eficácia do tal tratamento e cita os riscos de agravamento da saúde pública decorrentes de seu uso. Além disso, também é mencionado o veto contido no Código de Ética Médica (artigo 113) quanto à divulgação, “fora do meio científico”, de “processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente”.

Acontece que essa não foi a única a alardear o tal tratamento precoce. Na semana passada, um grupo curitibano que atua no ramo da construção civil já havia começado a veicular um anúncio em televisão – inclusive na Rede Massa, da família do governador Ratinho Junior – convocando empresários a oferecer o “protocolo preventivo da Covid” para seus funcionários. “Senhores empresários, peçam ao seu médico que lhes ajude a fazer o protocolo preventivo da Covid. Somente o governo não consegue combater a pandemia e esses lockdowns não terminarão neste ano nem no próximo”, alardeia um empresário na peça publicitária.

Ontem, foi vez do assunto virar projeto no legislativo municipal, com os vereadores Eder Borges (PSL), Ezequias Barros (PMB), Pastor Marciano Alves (Repu) e Sargento Tânia Guerreiro (PSL) querendo que a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) disponibilize, gratuitamente, medicamentos para o tratamento precoce contra a Covid-19.

Centro de Tratamento oferece consultas e medicamentos gratuitos

A iniciativa mais “ousada”, porém, é provavelmente a criação do Centro de Tratamento Imediato da Covid (CTI Curitiba), com apoio do projeto Sociedade Contra a Covid-19 e do Programa do Voluntariado Paranaense (Provopar). Coordenado por médicos voluntários e sustentado com o apoio de empresários e pessoas da sociedade civil, o CTI alega ter o objetivo de “minimizar o drama das pessoas afetadas pela doença”. A ideia é receber pacientes que ainda apresentem os primeiros sintomas da Covid, oferecendo atendimento ambulatorial e até mesmo medicamentos gratuitos, dependendo da condição financeira do paciente. Nas redes sociais, a divulgação do projeto é acompanhada de hashtags como #tratamentoprecocecovid19.

Segundo Carlise Kwiatkowski, presidente do Provopar, no primeiro dia de trabalho do CTI, na terça-feira, foram realizados mais de 60 atendimentos e mais de 600 ligações foram recebidas. A procura é tão grande que ainda no primeiro dia a agenda de consultas já lotou para o restante da semana. Os atendimentos são individuais e feitos por médicos voluntários numa clínica do Alto da Glória.

“Esses médicos, que tem lutado para desafogar todo o sistema de saúde diante desse caos aí, esses médicos nos procuraram e pediram para que ajudássemos as famílias no tratamento imediato [contra a Covid-19], assim que começassem os primeiros sintomas”, explica Carlise, revelando ainda que a Secretaria Municipal e Estadual da Saúde não foram consultadas sobre a iniciativa – ou mesmo qualquer entidade médica.

“Não [procuramos ninguém], a partir do momento em que o Provopar tem parceria com médicos, que tem CRM e liberdade de prescrever medicamentos. E não estamos fazendo nada contra a saúde pública”, diz a presidente do Provopar. “Nosso papel não é bandeira política, é atender o maior número de pessoas possível, não deixar a doença agravar e [permitir] que as pessoas passem pelo vírus da melhor forma possível. É uma doença que não dá para brincar, exige respeito e união. Agora não é hora de discussão, mas de união”, complementa.

Questionada sobre quais os medicamentos que costumam ser prescritos no CTI, ela disse que não saberia dar a informação, porque isso dependeria de cada paciente e do médico atendendo. Também negou que doações de medicamentos estivessem sendo aceitas, mas o Bem Paraná, num primeiro contato feito com o CTI, recebeu uma informação diferente, inclusive com a indicação de necessidade de doação de fármacos como azitromicina.

CRM-PR ressalta ‘autonomia do médico’…

Procurado pelo Bem Paraná, o Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR) evitou se posicionar de forma mais incisiva sobre o “tratamento precoce” à Covid-19 e também não criticou as iniciativas que recentemente surgiram em Curitiba. Segundo a entidade, “o momento é de união no combate à pandemia” e toda prescrição médica deve ser individualizada através de consulta. “Somente o médico pode diagnosticar e tratar doenças. A autonomia do médico e do paciente é garantida conforme parecer do CFM”, apontou o CRM-PR por meio de nota.

Já a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Curitiba destacou não ter qualquer relação com iniciativas como o CTI Covid e esclareceu que desde o início da pandemia “segue orientações embasadas em evidências médicas”. Ainda segundo a pasta, a “prescrição de tratamento sem a devida comprovação de eficácia ficará a critério do médico que, se optar por fazê-la, deverá informar ao paciente a falta da evidência científica de sua eficácia e o potencial risco de danos à saúde.”

A Secretaria Estadual da Saúde (Sesa-PR) também foi procurada, mas não respondeu ao Bem Paraná até o fechamento desta reportagem.

Importante destacar que, de acordo com o Código de Ética Médica, efetivamente é direito dos profissionais de saúde indicar procedimentos que julguem adequados aos pacientes. Contudo, essa indicação deve estar condicionada a práticas cientificamente reconhecidas, tanto que cabe aos médicos “aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade”.

… mas AMB pede o ‘banimento’ de medicamentos como cloroquina

Em boletim divulgado na terça-feira, a Associação Médica Brasileira (AMB) defendeu o banimento da utilização de fármacos como hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, no tratamento da Covid-19. Segundo o documento, “infelizmente” essas medicações “não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da Covid-19, quer seja na prevenção na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença”. O texto é assinado por dezenas de entidades médicas, entre elas a Associação de Medicina Intensiva Brasileira e a Sociedade Brasileira de Infectologia.

Além de não haver comprovação sobre qualquer benefício do uso desses medicamentos, o infectologista Jaime Rocha ainda destaca a possibilidade de o uso desses fármacos virem a agravar o quadro de pacientes acometidos pela doença pandêmica. “Não tem benefícios e pode haver efeitos colaterais. Nós, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), já dissemos isso mil vezes, mas as pessoas insistem em procurar tratamentos milagrosos. Somos contra”, afirma o médico.

“Ninguém no mundo usa e ainda se insiste em oferecer esse tipo de coisa por aqui”

Intensivista do Hospital Angelina Caron, Irinei Melek, que é presidente da Associação Paranaense de Pneumologia, conta que tem recebido muitos pacientes com Covid-19 no hospital que fizeram tratamento precoce e, ainda assim, acabaram na UTI após contraírem o novo coronavírus, num indicativo sobre a ineficácia dos tratamentos que tem sido alardeados em maior escala.

O pior de tudo, aponta ainda o especialista, é que muitas vezes medicamentos sem a devida comprovação científica são colocados como uma panaceia, o que pode dar uma falsa sensação de segurança à população, que acaba relaxando nas medidas preventivas mais básicas, como o distanciamento social, higiene das mãos e uso de máscara.

“Queria ser otimista e dizer que funciona [o tratamento precoce com medicamentos como ivermectina, cloroquina e outros], mas não há comprovação e então não podemos recomendar. Entendo a angústia de querer resolver o problema de maneira rápida, mas já passamos disso. Mais de um ano [de pandemia], ninguém no mundo usa isso e ainda se insiste em oferecer esse tipo de coisa por aqui”, critica.

Ainda segundo o Dr. Irinei, o estudo dos profissionais que estão na linha de frente de enfrentamento à pandemia é constante, sempre analisando o que vale e o que não vale a pena se testar no tratamento da doença pandêmica. “Se você chega no meu consultório, vou te dar alguma coisa dizendo que tem algumas evidências, vou sugerir esse remédio, aquele xarope… Mas não é uma panaceia da cura da Covid. Somos contra essa história do kit [de tratamento precoce]”.

Relatos do front

Na semana passada, um médico que atua na linha de frente, em uma UPA de Curitiba, fez um desabafo ao Bem Paraná sobre as situações com que se depara no dia a dia. “O duro é estar o dia inteiro trabalhando pesado [com casos de Covid-19], situações complexas, aí entra na internet e é só o pessoal falando em tratamento precoce. Isso dá um desânimo…”, disse o profissional, que pediu para não ser identificado. “Tudo que prescrevo é baseado em estudo, e tem vários níveis de estudo. Os de mais alta evidência demonstram que não tem nada de benefício e as vezes ainda pega complicações, faz efeito colateral. Esses dias recebi um paciente com hepatite grave por uso de ivermectina. E aí, como vai fazer num caso desses? E tem muita gente usando, acha que está protegido, se expõe, passa [o vírus] para o vô, a vó, eles morrem e aí vem o remorso. Já peguei várias situações assim”.

Resultado de pesquisas sobre uso de medicamentos no tratamento precoce

  • Estudo de maio de 2020, feito nos Estados Unidos, mostrou que a hidroxicloroquina não melhorou o quadro de pacientes hospitalizados com Covid-19. O artigo foi publicado no “New England Journal of Medicine”.
  • Pesquisa chinesa apontou que o remédio não funcionava em casos leves a moderados. O estudo saiu no “The British Medical Journal”.
  • Uma pesquisa com 821 pacientes mostrou que a hidroxicloroquina também não funcionava para prevenção da Covid-19. Também foi publicada na “The New England Journal of Medicine”.
  • Pesquisa feita nos Estados Unidos reforçou o achado de que a hidroxicloroquina não funcionava em casos leves de Covid; publicada na “Annals of Internal Medicine”.
  • Ensaio coordenado pela Universidade de Oxford associou a hidroxicloroquina ao agravamento de casos de Covid-19 e mortes.
  • Dois novos estudos publicados na ‘Nature’ mostraram que a cloroquina e hidroxicloroquina são ineficazes.