Em 30 de janeiro de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou emergência sanitária de interesse internacional em razão de um surto de doença respiratória iniciado na China. Apenas em 11 de março do mesmo ano a OMS reconheceu se tratar de uma situação pandêmica. Passado mais de um ano a doença e as mortes por ela provocadas não dão trégua aos sistemas de saúde.

A crise decorrente da emergência sanitária evidenciou que as estruturas médico-hospitalares dos sistemas público e privado de saúde por mais completas e bem equipadas que sejam, não conseguem suportar a alta demanda. A escassez de recursos decorrente do agravamento da pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 trouxe mais um desafio para os profissionais da área de saúde: a difícil escolha de que vida salvar. E se já é difícil conviver diariamente com as exigências do trato com os doentes graves e com o número expressivo de mortes, ter que fazer a escolha é emocionalmente muito mais cruel.

E é nesse cenário de mais absoluta escassez de recursos (equipamentos, medicamentos e pessoal qualificado) e de altíssima demanda que se torna imperioso debater os protocolos ou diretrizes de escolha – que será sempre trágica porque poderá levar (e é quase certo que o fará em razão da taxa de mortalidade do vírus) à morte do paciente preterido.

O debate deveria ser capitaneado pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Federal de Medicina que, infelizmente, até o momento, não definiram protocolos para realização das escolhas. Definir critérios de escolha (independentes da doença apresentada) é importante não só para o médico/gestor que a fará, mas para que a sociedade compreenda os critérios utilizados, especialmente porque as subjetividades devem ser deixadas de lado.

Junto com a 2a. grande onda que está assolando o país, diante do silêncio do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Medicina, alguns entes privados optaram por divulgar seus protocolos. Entre os documentos divulgados, destaca-se o da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) em conjunto com a Associação Brasileira de Medicina de Emergência (ABRAMEDE), Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) que aprova uma série de recomendações para médicos e gestores realizarem a alocação de recursos em face do colapso do sistema de saúde, afastando o critério etário como um critério de escolha porque discriminatório por si.

Em breve síntese, o documento afirma que qualquer que seja o critério, deve ele em primeiro plano levar em consideração o benefício prognóstico das terapias escolhidas. Uma vez determinada a terapia, deve ser ela compartilhada com toda a equipe assistente, com o paciente (se consciente) e com seus familiares.

Para a adoção do protocolo de triagem sugere-se a observação do arcabouço bioético e legal brasileiro (especialmente no que se refere à vedação da eutanásia e possibilidade da ortotanásia e oferta de cuidados paliativos); a existência da declaração do estado de emergência sanitária; a continuidade dos esforços para aumentar a oferta de recursos; o envolvimento dos gestores de todos os níveis da saúde. Condições necessariamente informadas pela proteção e promoção da dignidade da pessoa humana (valor-fonte do ordenamento jurídico brasileiro) e pela reconhecida vulnerabilidade do paciente.

Qualquer que seja o protocolo adotado, não pode o paciente preterido ficar sem nenhum auxílio. Enquanto o paciente aguarda é necessário oferecer-lhe cuidados terapêuticos adequados de acordo com a disponibilidade.

Ainda, independente do protocolo aplicado, não deve ser a decisão apenas informada pela ordem de chegada ou chance de sobrevivência. Outros critérios devem ser somados a esses visando a melhor distribuição da oportunidade de tratamento (princípios da beneficência e da justiça), que se traduzem em três objetivos “(i) salvar o maior número de vidas (sobrevida a curto prazo); (ii) salvar o maior número de anos de vida (sobrevida a longo prazo); e mais controversamente (iii) equalizar a oportunidade de indivíduos de passar pelos diferentes ciclos de vida”.

O protocolo proposto pelas entidades antes mencionadas baseia-se no modelo de triagem terciária proposto por Biddinson et al e White, com sugestões de critérios de desempate. O protocolo é composto por um sistema de pontuação que leva em consideração múltiplos critérios que representam diferentes objetivos éticos. Assim, quanto menor for a pontuação obtida pelo paciente, maior será a sua prioridade2. Os critérios de triagem devem ser revistos regularmente levando-se em consideração a evolução da doença e do quadro clínico do paciente.

Destaca-se do documento o tão aguardado reconhecimento das diretivas antecipadas de vontade do paciente. Embora o Conselho Federal de Medicina já reconheça essas declarações de vontade como um direito do paciente (Resolução n. 1.995/12), fato é que muita resistência há na prática médica, especialmente em situações de urgência e emergência (vide arts. 10 e 11 da Resolução n. 2.232/19, CFM). A pergunta que fica, então, é se compreender se finalmente os médicos estão realmente reconhecendo a liberdade de escolha do paciente como um direito, ou se se trata apenas de uma conveniência decorrente do momento. O tempo dirá!

Por fim, vale frisar, que a ausência de protocolos e diretrizes nesse momento aumenta o estresse sobre o profissional da linha de frente e coloca em xeque a credibilidade das medidas de contingenciamento. Para que as escolhas se justifiquem ética e juridicamente é necessário que seus critérios sejam transparentes e objetivos3, cientificamente justificados, juridicamente bem fundamentados e amplamente aceitos.

Estando os critérios claros e bem arrazoados, em regra não há o que se falar em responsabilidade civil ou penal do profissional que realizou a trágica escolha. A princípio também não é possível se falar em responsabilidade do Estado uma vez que a situação de escassez decorre de situação imprevisível e extraordinária. No entanto, essas soluções não são absolutas, uma vez que em certos casos a conduta do médico ou do Estado pode ter contribuído para a ocorrência do dano (morte do paciente). Fórmulas mágicas não existem e, por isso, embora os protocolos sejam indicativos de boa prática médica, não são automaticamente causas excludentes de responsabilidade. O modo pelo qual ser reage à doença e à crise serão essenciais na análise de eventual responsabilidade e esse exame é obrigatoriamente casuístico e realizado com extrema cautela.

Não há diretriz ou protocolo perfeito que dê conta de momentos pandêmicos. A natureza complexa das escolhas exige um processo de validações éticas, médicas e jurídicas também complexas e que é incapaz de se esgotar em si. Todo protocolo deve conseguir demonstrar a maximização de benefícios a curto e a longo prazo e daí a necessidade de seu aperfeiçoamento em razão das questões práticas que com certeza irão se apresentar. A preocupação deve estar centrada, agora, em se evitar mortes desassistidas (mistanásia), o mais trágico dos atuais problemas.

O momento exige que os egoísmos sejam abandonados em nome de uma solidariedade social que se apresenta a cada dia mais necessária. Trata-se de um chamado à atuação com responsabilidade social, essa sim capaz de auxiliar na contenção da crise pela grande adesão às medidas preventivas e profiláticas.

Fernanda Schaefer é advogada. Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná. Professora do UniCuritiba