SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um camelô no centro de São Paulo organiza roupas em uma arara no meio da rua. Entre modelos de banda de rock e super-heróis da Marvel, ele revela uma camiseta toda preta, estampada com uma cruz branca de ponta a ponta formando a palavra “fé”.


Naquele mesmo quarteirão, outras três lojas oferecem a estampa, mas não só em camisetas. Há acessórios como pochetes e bolsas em exibição e um dos vendedores está usando um boné com o mesmo símbolo.


Desde o fim do ano passado, a “fé” em formato de cruz é febre no vestuário –e na pele– do brasileiro. “É bem comum, sai muito mesmo”, diz o tatuador Paulo Fernando Neto, que já perdeu as contas de quantas vezes tatuou isso.


Ele conta que antes tatuava mais imagens de santos e de duas mãos juntas rezando. “A maioria tem crença, mas não são pessoas religiosas, que costumam ser mais sistemáticas em relação a tatuagens.”


Hoje dominando as ruas, o desenho tem origem tão confusa quanto sua propagação. Marcas menores conseguem peças de fornecedores diversos, mas a dona de uma loja em Campinas, no interior paulista, afirma ser a criadora.


“Vi uma camiseta americana com ‘Jesus’ escrito em forma de cruz. Como não fazemos cópias, chamei uma moça que trabalha comigo e saiu a cruz escrito ‘fé'”, diz Kelli Gasques, da Ruah Moda Cristã, que lançou a coleção no último mês de agosto. 


“Quando vi pela primeira vez, era um homem com a camiseta. Minha produção é terceirizada, então pensei que meu fornecedor deveria estar fazendo [por conta própria].”


Havia, contudo, uma diferença. A figura que a paulista diz ter criado trazia um coração no lugar do acento em “fé”.


Gasques recorda que, meses depois, a estampa estava “em todo lugar que você olhava”. “Não aguento mais nem ver! Estou enjoada. Tem bijuteria, colar, brinquinho, anel. Até vestido!”


Com clientes elitizados e camisetas que saíam por cerca de R$ 80, ela pouco lucrou –e tampouco quis lutar pelos direitos– do desenho. “Em estampa, por uma coisinha que você muda, podem alegar que é outra coisa”, diz. “De todo mundo, fui a que ganhou menos dinheiro.”


O pastor Luciano Luna conheceu a camiseta quando começaram a aparecer com ela em sua igreja, a Poderoso Deus, em São Paulo. Duas funcionárias próximas dele têm a figura tatuada, mesmo que a prática não seja recomendada pelos evangélicos. “O corpo não é para ter marcas, mas, óbvio, a pessoa faz o que bem entende. Pelo menos tatuou uma cruz, uma fé.”


Mesmo tendo supostamente surgido em uma loja católica, a camiseta se firmou ao conquistar os evangélicos.


Amanda Vieira, sócia da loja virtual Galeria do Cristão, começou a procurar a peça depois que viu fiéis com ela no Rio de Janeiro, onde vive. “Parecia uniforme”, diz. “Já vendi até para espíritas, mas a maioria é cristão, principalmente evangélico.”


Até a virada do ano, o consumo da camiseta ainda era restrito. “Muitas pequenas confecções começaram a fazer mais barato, os clientes [cristãos] pararam de comprar”, analisa Vieira. “Acredito também que devido aos memes. No Réveillon, tinha foto de pessoas com a blusa e gente dizendo: ‘O governo está dando?’.”


Antes relacionada à expressão da crença religiosa, o desenho agora tem significados e públicos bem mais amplos. 


Kathia Castilho, especialista em moda e semiótica, enxerga a fé como parte da cultura brasileira. “Somos um povo que tem crenças particulares, dizemos que Deus é brasileiro, que a fé move montanhas”, teoriza. “Acreditamos que dias melhores virão.”


Na visão de Kelli Gasques, a estampa caiu no gosto popular. “Estamos numa fase extremamente difícil economicamente, e a fé não é exclusiva de uma crença”, explica.


Já o pastor Luciano Luna vê uma relação indireta da massificação do símbolo com a eleição de Bolsonaro.


“Ele foi eleito por uma maioria evangélica pela falta de esperança nos políticos”, analisa. “Ele simulou o sentimento de fé, mas [agora] está trazendo desesperança na gente. Aí acho que vira ao contrário, o símbolo funciona para as pessoas dizerem: ‘Vamos continuar tendo fé’.”