SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O engenheiro Jerson Kelman, 71, passou de crítico ferrenho a defensor da medida provisória que propõe um marco regulatório para o saneamento básico.


A MP, que precisa ser votada até 3 de junho para não perder a validade, enfrenta a oposição de 24 governadores, que veem no texto uma ameaça às companhias estatais do setor.


Na opinião de Kelman, que presidiu a Sabesp entre 2015 e 2018, os maiores problemas do projeto foram dirimidos em sua tramitação. Na visão dele, o texto permite uma competição justa pela prestação dos serviços.


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Pergunta – Por que o sr. é favorável à MP do saneamento?


JK – Porque o texto tem qualidades que não têm sido abordadas nas discussões sobre o assunto.


Quais são?


JK – A primeira é que a MP obriga as pessoas a se ligar à rede de esgoto. Hoje, a situação é mal definida, e há juízes que dizem que as pessoas têm direito de não se conectar.


Essa conexão deveria ser uma obrigação social. Não tem sentido dar desconto ao cidadão que não se conecta à rede de esgoto. Pelo contrário, ele deveria pagar multa. Isso fica claro com o texto.


Por outro lado, o projeto reconhece que há famílias que não terão recursos para pagar essa ligação. Nesse caso, o texto admite que a concessionária faça o serviço e esse custo seja inserido na tarifa.


Outra vantagem muito importante diz respeito à remuneração dos ativos em caso de troca [da empresa que presta os serviços de saneamento].


Pela regra vigente, se sai um prestador de serviço A e entra uma empresa B, é a prefeitura que deve pagar a quem sai pelos ativos instalados e que não foram quitados ainda.


Por que isso é ruim?


JK – Na prática, com a mudança de mãos, a estatal seria desapropriada porque só pode cobrar da prefeitura, que tem uma longa lista de credores. Entrará na fila dos precatórios.


Essa situação leva a injustiças. É de interesse geral que haja uma regra mais clara, que determine que a indenização tem que ser prévia à mudança do prestador de serviço, e a MP faz isso. Quem entra paga os investimentos de quem sai.


O senhor se opôs ao texto original da MP e a texto anterior, que perdeu validade. O que mudou de lá para cá?


JK – Como presidente da Sabesp, sempre me opus aos textos porque eles admitiam que os contratos fossem celebrados na escala municipal.


O texto da MP está em linha com decisões judiciais que determinam que, quando há ativos compartilhados, como estações de tratamento e adutoras, há interesse conjunto e é preciso ter governança compartilhada na prestação e na regulação do serviço.


O senador Tasso [Jereissati, PSDB-CE, relator da medida provisória] teve o mérito de definir que [o saneamento] só é de interesse local se as instalações não são compartilhadas com outra cidade. Se são, uma entidade interfederativa deve cuidar do tema.


Além disso, o texto reconheceu que a escala na prestação do serviço deve ser mantida. A Sabesp, por exemplo, serve 380 municípios, mas tem 15 unidades de negócio, o que barateia a tarifa. Se fosse condenada a ter 380 unidades, o preço subiria.


O projeto agora diz que o serviço será preferencialmente prestado por blocos de cidades, e isso é um avanço.


Mas não define quais os critérios para formar esses grupos de municípios.


JK – Não diz, mas atribui a estados e à União a responsabilidade de organizar isso. Na verdade, colocou a faca e o queijo na mão dos governadores. Eles é que poderão definir o tamanho dos blocos de cidades.


Mesmo assim, eles são contrários ao texto.


JK – É espantoso que eles assinem uma carta contra a medida provisória que permite que eles organizem os serviços. Eles é que podem definir se será licitação por município ou conjuntos de cidades.


Podem formar conjuntos em conjuntos misturando o filé e o osso. A acusação que eu mesmo fiz muitas vezes é que, da maneira como estava o texto [sem a formação de blocos, com disputas por cidade], as empresas privadas escolheriam o filé e deixariam o osso com as estatais.


O projeto dá poder aos governadores. No limite, o estado inteiro pode ser um bloco.


A aprovação da medida provisória poderá estimular a privatização as estatais. Como o sr. vê isso?


JK – Os governadores que quiserem vender suas estatais poderão fazê-lo. Hoje, não podem porque os contratos feitos sem licitação perderiam a validade. Em uma situação de profunda crise fiscal, é surpreendente que os governadores digam não a essa possibilidade [de capitalização].


JERSON KELMAN, 71


Engenheiro civil formado pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), tem doutorado em hidrologia e recursos hídricos pela Universidade Estadual do Colorado (EUA); foi presidente da Sabesp, diretor-geral da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e presidente da ANA (Agência Nacional de Águas); preside o conselho de administração da Eneva.