Às vésperas de completar 80 anos – mais precisamente neste sábado, 31 -, Francis Hime recebeu a reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, em sua casa, projetada pelo arquiteto Sérgio Rodrigues, no Jardim Botânico, no Rio. Sentado à mesa de jantar e com uma bela vista da cidade à frente, Francis fez um mergulho em suas memórias, ainda muito vivas e com uma impressionante riqueza de detalhes, datas e diálogos. Mesmo contadas pela enésima vez, algumas de suas antigas histórias ainda lhe provocam boas risadas. Assim como falar de música ainda faz seus olhos brilharem, como se fosse um eterno aprendiz – apesar da longa trajetória iniciada aos 6 anos, como aluno de piano.

Um dos mais renomados pianistas, arranjadores e compositores brasileiros, Francis não consegue fazer um balanço desses 80 anos de vida sem projetar seu futuro na música. “Fico pensando no que posso fazer daqui para frente. Eu gostaria de fazer tanta coisa, e fico pensando, às vezes, qual o tempo que me resta de vida ou qual tempo me resta no sentido de produzir, porque acho que, quando você deixa de produzir, você meio que já não vive mais. A alegria da vida é muito ligada ao trabalho. Quero compor e fazer muitos shows. Gosto de fazer shows hoje em dia, que era uma coisa que eu tinha pânico antigamente”, diz, lembrando-se da época em que ainda precisava beber antes de subir ao palco. “Hoje, me sinto tão à vontade que até uma certa timidez no palco desaparece completamente.”

E Francis vai comemorar seu aniversário como mais deseja: no palco. Ele se apresenta no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, neste sábado, 31, às 21h, e domingo, 1°, 18h, ao lado da mulher, a cantora e compositora Olivia Hime. “Será um show que tenho feito com Olivia já há algum tempo, em cima do meu livro Trocando em Miúdos as Minhas Canções (em que ele comenta o seu processo de criação). É uma transposição de um pouco daquilo que falo no livro, e tem interação com o público também. Só nós dois, piano e duas vozes.”

Como o cantor brinca que as celebrações começam no dia 31 de agosto deste ano e só terminam no mesmo dia em 2020, outros projetos já estão engatilhados, como o disco de inéditas Hoje, previsto para ser lançado em 25 de outubro, pela Biscoito Fino, com participação de artistas amigos como Chico Buarque (com quem ele não trabalhava havia mais de 20 anos), Lenine, Adriana Calcanhotto, entre outros nomes que ainda são surpresa. O novo trabalho reúne composições de Francis com seus parceiros como Geraldo Carneiro, Paulo César Pinheiro, Olivia Hime, Adriana Calcanhotto, Thiago Amud, Herminio Bello de Carvalho, Tiago Torres da Silva, e outros. Inspirado nesse disco, Francis fará shows no Sesc Pinheiros, nos dias 6, 7 e 8 de dezembro, também com presenças ilustres, entre elas, Toquinho, Mônica Salmaso, Lenine, Olivia, Zé Renato, Leila Pinheiro e Dori Caymmi.

Meus caros amigos

Acompanhado de parceiros nas composições e de músicos nos estúdios e nos palcos da vida, Francis Hime fez o que lhe parecia mais coerente com sua carreira: gravar um disco comemorativo pelos seus 80 anos reunindo canções compostas com diferentes parcerias e com participação especial de amigos. Com 12 faixas, Hoje, seu novo álbum, marca, por exemplo, a reunião de Francis e Chico Buarque em um trabalho, algo que eles não faziam havia 22 anos, desde Álbum Musical, lançado em 1997. Em Hoje, Chico canta na faixa Laura, parceria de Francis e Olivia Hime, feita em homenagem à neta de 2 anos do casal. “Mandei para o Chico cantar, porque ele é padrinho da Luiza, minha filha, que, por sua vez, é madrinha da Laura.”

E por que ele e Chico ficaram tanto tempo sem trabalhar juntos? “Não teve nenhuma razão pontual, até eu estava comentando com ele outro dia que a gente se via mais na época em que eu jogava as peladas do Politheama (time montado por Chico). Até o final da década de 1990, eu ia lá. Eu tinha apelido de Katinha, que era ponta direita do Vasco – eu sou vascaíno -, mas eu não jogava no time do Chico, jogava no adversário. Não ficava ninguém me marcando, assim, às vezes, eu marcava uns gols antológicos”, diverte-se. “A gente se via mais em função disso. As peladas continuaram, eu é que parei de jogar, mas falei para ele que acho que vou voltar.”

Chico Buarque, que Francis conheceu na época dos históricos festivais, acabou se tornando um de seus mais importantes parceiros musicais. Assim como foram Vinicius de Moraes e Ruy Guerra, respectivamente, primeiro e segundo parceiros na carreira de Francis. Com Chico, ele compôs clássicos como Atrás da Porta, Vai Passar, Meu Caro Amigo, entre outros. “Comecei a parceria com o Chico em 1972, com Atrás da Porta, com a gravação sensacional da Elis, e foi logo depois de eu voltar dos EUA. Então, aquilo me deu uma visibilidade comercial muito grande”, diz o músico carioca. “Era para ficar um ano nos EUA, mas passei quatro anos estudando música: orquestração, regência, composição com professores incríveis.”

Francis lembra que Vinicius de Moraes atrasou em alguns anos a parceria dele e Chico. “Vinicius era muito ciumento.” Vinicius não foi só o primeiro parceiro de ‘Francisinho’ – como ele chamava Francis -, como quem o incentivou a largar a engenharia para se dedicar à música. Amigo da mãe de Francis, a artista plástica Dália Antonina, Vinicius o viu tocar aos 16 anos – “com aquela garra de menino, todo vaidoso, cheio de acordes”, brinca o músico. E pediu a Dália para deixar o filho seguir na música. Francis se formou como engenheiro, para ter um diploma, mas nunca seguiu a profissão. “A vez que eu usei (o diploma) foi para projetar uma estante e, quando botaram o primeiro livro, ela caiu (risos).” Por causa da aproximação com Vinicius, Francis tem seu nome ligado à segunda geração da Bossa Nova. “Sim”, ele confirma. “Apesar de minha música não ter tido tanto essa característica. Sem Mais Adeus é uma música que poderia ter um espírito, uma levada mais ligada à Bossa, mas a maior parte não tem essa ligação, mas tem influência do Tom (Jobim) e do Baden (Powell). Os dois são grandes influências para mim.”

E com João Gilberto? Francis conta que o pai da Bossa quase gravou duas de suas canções, Último Canto e Existe Um Céu, que João dizia adorar. Mas nunca deu certo. João morreu no dia 6 de julho. “A última vez que eu o vi foi no Municipal com Tom”, conta Francis, sobre a apresentação da dupla em 1992.

Novo álbum

De volta ao disco Hoje, aos parceiros e aos convidados, Francis Hime canta com Adriana Calcanhotto no samba Flores Pra Ficar, com quem ele também divide a parceria. “Essa música eu tinha dado para Adriana há dois anos, e tinha até me esquecido dela.” E, mesmo na ponte entre Brasil e Portugal, ela conseguiu finalizar a letra para entrar no disco. “Dividimos a faixa: canto um trecho, ela canta outro. Vou mais para o agudo, e ela, mais para o grave. É uma letra linda.”

Assim como Chico Buarque canta sozinho Laura, acompanhado por Francis ao piano, Lenine dá voz à música O Tempo e A Vida. Essa canção, aliás, foi a que inspirou Francis a pensar em um novo disco. “Mais ou menos em abril deste ano, eu tinha recebido um poema do Tiago Torres da Silva, meu parceiro de Portugal, com quem já tenho várias canções. Fiquei sem trabalhar em cima dela, porque gosto sempre de ficar um pouquinho namorando até vir uma ideia. Passaram-se alguns dias e aconteceu algo que nunca tinha me acontecido: acordei com uma música na cabeça, meio dormindo, peguei o celular que estava do lado, gravei balbuciando o canto, e voltei a dormir. Aí me lembrei de pegar esse poema e sobrepor a ele para ver se se encaixava.” Depois, a letra ganhou alguns tratamentos até chegar à versão final, que agradasse ao autor português, de um lado, e ao brasileiro, do outro. Virou um blues. “Essa coisa de compor sambas, marchinhas, e esse fado que virou um blues, Samba Funk, que é um samba rasgado, essa variação é uma característica do meu trabalho.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.