Foi durante uma conversa informal pelo WhatsApp, em um tedioso domingo de dezembro, que o coreógrafo Rodrigo Pederneiras e o músico Paulo Tatit, da dupla Palavra Cantada, iludiram a desesperança que marcava aqueles dias pandêmicos e vislumbraram um trabalho de alto poder criativo. Começaram trocando ideias até que, dezenas de mensagens trocadas depois, nasceu primavera (com minúscula mesmo), primeiro trabalho original do Grupo Corpo desde o início da pandemia e com trilha sonora do Palavra. O espetáculo tem estreia nacional nesta quarta, 27, no Teatro Alfa, com curta temporada – até domingo, 31.

Trata-se do primeiro trabalho conjunto de duas grandes marcas da cultura nacional – enquanto o Corpo, do qual Pederneiras é coreógrafo e fundador (ao lado do irmão Paulo), é uma das mais importantes companhias de dança contemporânea do Brasil, Tatit forma, com Sandra Peres, a dupla Palavra Cantada, responsável, há 27 anos, pela criação musical de indiscutível qualidade para o público infantil – o trabalho, porém, não é dirigido às crianças.

Assim, primavera é o resultado de uma leitura coreográfica que Rodrigo e sua companhia fizeram de 14 canções criadas e gravadas por Tatit e Peres, entre 1999 e 2017, e que foram adaptadas por eles. Um trabalho que exigiu perdas e acréscimos, favorecendo a linguagem corporal sem que a música perdesse sua originalidade. “Com a supressão da letra, da voz cantada e de boa parte das linhas melódicas, fomos inserindo linhas de piano, violão, contrabaixo e alguns vocalises”, explica Tatit. “A base instrumental é bem aberta e o resultado ficou muito sofisticado.”

Foi um processo que começou com concessões para combater a letargia. “Naquela época, final do ano passado, estávamos presos nas nossas casas, sem poder ensaiar, reunir o grupo, programar um espetáculo, projetar uma temporada, com os bailarinos fazendo aulas remotas”, relembra Pederneiras. Até aquele momento, e nos 18 meses anteriores, o grupo se agarrou a gravações de balés e à participação em eventos em plataformas digitais.

A partir daquela conversa entre Pederneiras e Tatit, um plano do Corpo que já se rascunhava (criar peças curtas, com novas coreografias, para a internet) ganhou novo impulso. “Foram quatro horas de mensagens pra cá e pra lá”, diverte-se Tatit. “E surgiu a ideia de selecionarmos e adaptarmos os playbacks da Palavra Cantada. Enviamos, Sandra e eu, dezenas de playbacks dos nossos 27 anos de carreira. Rodrigo selecionou 14 deles e começamos a trabalhar.”

Um dos principais pontos do trabalho foi transformar as canções de forma que não remetessem diretamente ao universo infantil, mas sem perder sua originalidade – assim, saíram as vozes, as melodias foram retrabalhadas e entraram novos instrumentos. Segundo Pederneiras, o projeto inicial, que previa peças curtas e independentes, foi sendo modificado até ganhar uma unidade. O coreógrafo se lembra de um antigo trabalho do Corpo, Prelúdios, de 1985, que são peças soltas, mas costuradas pela dança e pelas canções românticas de Chopin.

Em seus 36 minutos de duração, primavera é marcada por uma variedade de estilos musicais, partindo de um jazz light até chegar à percussão afro. “Construímos um balé completamente diferente, singular, com a música de alta qualidade da Palavra Cantada”, define Pederneiras. “Diferente também porque é, como uma primavera, uma antecipação de dias melhores. Conjuramos assim um futuro mais ameno e, por que não?, mais feliz.”

De fato, o Corpo é uma companhia essencialmente brasileira, que reflete em suas criações a pluralidade e complexidade do País. Fundado em 1975, em Belo Horizonte, o grupo tem uma trajetória marcada por uma criatividade que, moldada com precisão e rigor, garante uma excelência técnica para mesclar o popular e o erudito.

É o que se observa nesse novo trabalho, que traz uma nova leitura de canções da Palavra Cantada como Pé com Pé, Bolinha de Sabão, Passeio do Bebê e Meu Lugar. A concepção cenográfica, a cargo de Paulo Pederneiras, começou quando o trabalho ainda era pensado para a internet, com peças curtas. “Quando vimos que havia ali um arco, um conceito, um espetáculo inteiro, eu já estava testando o uso de câmeras e decidi tirar partido dessa ideia”, explica Paulo. “No espetáculo, posicionamos duas câmeras minúsculas à frente do palco, operadas da coxia, trabalhamos as projeções dos bailarinos em tempo real, projetadas numa tela de tule preto, atrás da cena.” É a primeira vez que a companhia utiliza esse recurso em uma de suas coreografias.

Já os figurinos foram pensados por Freusa Zechmeister de forma a ressaltar o contraste. Assim, como o palco e o fundo são marcados por cores escuras, as bailarinas usam uma vestimenta com cores fortes (amarelo, laranja, vermelho e verde), enquanto os homens utilizam um figurino notadamente mais clássico, como calças pretas, mas com um corte mais moderno, complementado por camisetas justas.

E, como primavera nasceu em um momento marcado pela austeridade por causa da pandemia, o balé criado por Rodrigo Pederneiras é um reflexo disso. “Há somente três pas-de-deux”, explica. “E só se tocam os bailarinos que são casais e vivem juntos. O restante do espetáculo se desenvolve em duos, trios, quartetos e todos mantêm distância entre si; há somente uma cena com oito bailarinos.”

Isso permite, no entender do coreógrafo, que o trabalho individual de cada bailarino seja mais facilmente observado.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.