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As historiadoras e pesquisadoras Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling buscavam um tema para seu próximo trabalho conjunto (elas já escreveram Brasil: Uma Biografia, em 2015) quando a pandemia do novo coronavírus paralisou o mundo – era março e cada uma estava em sua cidade: Lilia em São Paulo e Heloisa em Belo Horizonte. “Acreditávamos que, em dois meses, tudo estaria resolvido e voltaríamos a nos encontrar pessoalmente”, conta Heloisa. Como o futuro parecia cada vez mais incerto, as pesquisadoras se sentiram motivadas pela ação da covid para direcionar o novo trabalho. “Chegamos à gripe espanhola que, à medida que encontrávamos mais detalhes, muito se aproximava de fatos da atualidade”, observa Lília.

De março a setembro, elas fizeram inúmeras pesquisas, especialmente em jornais da época e em dissertações, para finalizar A Bailarina da Morte – A Gripe Espanhola no Brasil, lançado agora pela Companhia das Letras. Trata-se de um minucioso relato sobre como a doença provocou sérios estragos em diversas capitais brasileiras (Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Belém e Manaus).

O título, soturnamente poético, é explicado pelo fato de a moléstia ter sido chamada também de dançarina “porque bailava e se disseminava em larga escala e porque o vírus deslizava com facilidade para o interior das células do hospedeiro e se alterava ao longo do tempo e nos vários lugares em que incidia”, explicam elas, no livro.

A primeira aparição do vírus influenza aconteceu em 1918, acredita-se que nos Estados Unidos, e provocou ao menos 50 milhões de mortes no mundo (possivelmente até 100 milhões, estimam alguns estudiosos). E, embora a pandemia tenha se prolongado por dois anos, talvez dois terços das mortes tenham ocorrido em um período de 24 semanas, e mais da metade dessas mortes se deu em menos tempo, de meados de setembro a início de dezembro de 1918. Uma mortandade mais rápida e mais letal que a Primeira Guerra Mundial que, entre 1914 e 1918, vitimou entre 20 milhões e 30 milhões de pessoas.

Caipirinha como remédio

A ação do vírus da gripe espanhola era marcada pela violência dos sintomas – quando seriamente infectada, a pessoa sangrava pelo nariz, pelos ouvidos, pela boca, pelos olhos, por qualquer orifício do corpo, enfim. Segundo o relato de testemunhas, os doentes ficavam azuis com a falta de oxigênio. Caíam de cama pela manhã e, por vezes, logo à tarde estavam mortos.

“No Brasil, a gripe espanhola chegou em algum momento do mês de setembro. Veio pelo mar e desembarcou na cidade do Recife, talvez por volta das oito horas da manhã do dia 9, quando o navio Demerara, procedente de Liverpool, atracou no cais externo do porto com alguns passageiros e tripulantes combalidos e outros contaminados”, escrevem as pesquisadoras no livro. “Uma vez em solo, espalhou-se fácil e rápido, desde o Recife ao Rio de Janeiro, do litoral para o interior. O vírus percorria sempre o mesmo trajeto. Aportava, expandia-se por toda a cidade e desenhava a rota do contágio, através das ferrovias, esparramando-se pelo interior do País.”

“E, como acontece com toda pandemia, houve um forte sentimento de negação no início, especialmente da classe política”, observa Lilia, traçando um paralelo com a covid-19 que, mesmo quando já se alastrava pelo planeta, foi desdenhada por chefes de Estado – alguns, como Trump e Bolsonaro, continuaram a minimizar o problema, mesmo com o isolamento social já estabelecido em quase todos os países.

No Brasil dos anos 1920, a população era de 29 milhões de habitantes e pelo menos 35 mil morreram da doença. Alguns, porém, foram erroneamente identificados como sendo uma das vítimas – é o caso de Rodrigues Alves, eleito presidente do Brasil para um novo mandato em 1918, mas que não conseguiu tomar posse em novembro por adoecer. “Quem tomou posse foi o vice, Delfim Moreira, e Rodrigues Alves morreu em janeiro de 1919”, conta Lilia. “Só que não foi de gripe espanhola, como mostram até hoje matérias jornalísticas e livros de história – basta consultar o atestado de óbito, que aponta parada cardíaca causada por uma anemia perniciosa.”

Uma série de notícias falsas e boatos, aliás, se alastrou pelo País sobre diversos assuntos. Especialmente sobre supostos medicamentos que combateriam a doença. Um dos mais difundidos foi o sal de quinino, usado no tratamento da malária e que, além de não auxiliar contra a gripe espanhola, provocava desmaios repentinos. “Muitas pessoas foram identificadas como mortas nas ruas, quando tinham apenas desmaiado”, comenta Heloisa.

As particularidades regionais, aliás, ditavam os ingredientes miraculosos. Enquanto no Norte e Centro-Oeste predominavam ervas medicinais de influência indígena e, no Rio, a aposta era a canja de galinha, em São Paulo, acreditava-se que a combinação de aguardente, limão e mel era infalível. Na verdade, nascia a caipirinha, que se transformou em uma bebida popular, mas sem nenhuma eficácia como medicação. “No Sul, foi tomada uma medida correta: a de não se tomar o chimarrão em conjunto, pois facilitava a propagação do vírus”, conta Lília.

Na busca por atitudes positivas, Heloisa identificou em Belo Horizonte um eficiente programa de combate. “Houve demora na percepção da gravidade da doença, como aconteceu em todo o País, mas, logo que isso aconteceu, a resposta dos médicos foi decisiva. E isso aconteceu porque lá a gripe não foi tratada no campo da política.”

De fato, a politização da gripe espanhola foi um grave problema que atacou diversos países. Afinal, as nações envolvidas no combate à epidemia tentaram minimizar a ameaça, preocupadas com que a verdade afetasse o moral da população. “Em cidades como Recife, Salvador, Belém, temeu-se que o anúncio da gripe esvaziaria o porto da cidade, o que traria grande prejuízo”, observa Lilia. “Mas, quando a situação revela-se crítica, praticamente todas as autoridades tentaram se informar cientificamente. Uma atitude positiva se comparada com a situação atual, quando temos um Ministério da Saúde sem comando.”

A dificuldade em lidar com a morte, tanto durante a gripe espanhola como agora, diante da covid-19, é um dos principais problemas permanentes. “Depois de pandemias, acontece um sequestro da morte na sociedade: não se cria um lugar para o luto coletivo e ele se transforma em um trauma. E a situação se agrava quando temos um presidente que se orgulha de seu corpo de atleta”, continua Lilia. E Heloisa completa: “é perigoso esquecer – temos sempre de aprender com a memória e o conhecimento, como dizia Albert Camus”.

A BAILARINA DA MORTE

Autoras: Lilia M. Schwarcz e Heloisa M.Starling

Ed.: Companhia das Letras (368 págs., R$ 59,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.