A geração de Paula, Hortência e Janeth foi campeã do mundo e deu ao Brasil sua primeira medalha olímpica no basquete feminino. O sucesso daquela seleção, no entanto, só foi possível por causa de outras jogadoras, que lutaram contra o preconceito e quebraram paradigmas. Como diz um antigo provérbio árabe: “Quem planta tâmaras, não colhe tâmaras” devido ao longo período necessário até 100 anos para todo o processo.

A história das desbravadoras da modalidade no Brasil é o tema do documentário “Mulheres à Cesta”, de Helen Suque e Silvia Spolidoro, que será lançado neste domingo, às 19 horas. Maria Helena Cardoso, Norminha, Heleninha, Nadir, Odila, Marlene, Benedita, Jacy, Nilza, Delcy, Elzinha e Simone, pavimentaram o terreno na década de 1960 e 1970 para que outra geração pudesse disputar pela primeira vez os Jogos Olímpicos e conquistar uma medalha.

O documentário nasceu do livro de mesmo nome, escrito por Claudia Guedes, professora de cinesiologia da San Francisco State University. Ela retrata com riqueza de detalhes todo o caminho percorrido por essas jogadoras para entrar em quadra e fazer o que mais gostavam em uma sociedade extremamente machista, quando mulheres praticarem esportes era quase uma ofensa. Algumas modalidades, como lutas e futebol, eram até proibidas por um decreto de 1941, assinado pelo então presidente Getúlio Vargas, e que perdurou até 1980.

“A mulher era chofer de forno e fogão”, relembrou Maria Helena Cardoso, que dedicou 50 anos dos seus 80 ao basquete. “Quando fui jogar em Piracicaba, com 17 anos, eu andava de calça de agasalho e tênis para ir treinar e você precisava ver como o pessoal me olhava. Mulher não podia se vestir assim naquela época. A gente era chamada de mulher macho, um preconceito enorme. Eu terminei até um noivado porque ele não aceitava que eu jogasse basquete”.

Companheira de Maria Helena naquela equipe, Norminha, de 78 anos, reforça o sentimento da época em relação ao basquete feminino.

Aquela geração foi responsável pelo reconhecimento do basquete feminino internacionalmente. Em 1965, o Brasil foi convidado pela Federação Internacional de Basquete (Fiba) para amistosos contra a antiga Tchecoslováquia em Madri. As partidas entre uma equipe versátil contra outra de força física foram um teste para a inclusão do naipe nos Jogos Olímpicos. As meninas encantaram o mundo.

Após aquela aprovação, o basquete feminino entrou na Olimpíada em Montreal, no Canadá, em 1976, porque Cidade do México (1968) e Munique (1972) optaram por outras modalidades antes disso. Maria Helena, Heleninha, Norminha e companhia nunca puderam disputar os Jogos Olímpicos, o que aconteceu para o Brasil somente em 1992, em Barcelona. Mas o esforço foi recompensado em 1971, no Mundial, quando conquistaram uma medalha de bronze no ginásio do Ibirapuera, em São Paulo.

Na campanha, o Brasil perdeu apenas para União Soviética (ouro) e Checoslováquia (prata). Com o ginásio lotado e transmissão pela TV Gazeta (nenhuma outra emissora se interessou em exibir ao vivo), aquela geração viveu seu auge. “O Mundial foi um marco”, resumiu Maria Helena. “Lembro que no primeiro jogo, diante da França, ficamos dez minutos sem pontuar de tão nervosas porque o ginásio estava lotado. Isso não existia no basquete feminino. Era aquele grito de Brasil, Brasil, Brasil… Todos estavam empolgados por causa do título (no futebol) na Copa de 70”.

“A gente jogava para meia dúzia de gato pingado. Ninguém acreditava na gente antes daquele Mundial”, reforçou Norminha. “A nossa realidade era outra. A gente tinha de pagar do próprio bolso o tênis e os outros materiais para jogar. A primeira vez que ficamos alojadas em um hotel foi justamente na preparação daquele Mundial. A gente sempre ficava debaixo de arquibancada. O que fizemos naquela época foi importantíssimo para o basquete feminino”.

“Mulheres à Cesta”, no entanto, não fala apenas de basquete. O documentário tem uma contextualização histórica importante. A luta das mulheres por igualdade, situação que permanece até hoje. Não à toa, as jogadores da Liga de Basquete Feminino lançaram uma campanha (#Levanteaboladelas) recentemente para pedir condições iguais a dos homens na modalidade.

“Não é um filme que fala sobre o basquete, fala da luta feminina por igualdade”, explicou Hellen Sucre, produtora, roteirista e diretoria do documentário. “Hoje infelizmente vivemos um retrocesso. Nós (mulheres) temos de ficar em eterna vigilância. Nada é dado. Tudo é uma conquista. É uma luta constante pela igualdade, para ser reconhecida como cidadã”.

Roteirista e diretoria, Silvia Spolidoro acrescenta sobre o documentário. “É um ato de dar voz para essas mulheres, que tiveram superação e deixaram um legado. A mulher tinha de ser mãe naquela época. Eles enfrentaram o preconceito, lutaram contra tudo e contra todos para jogar basquete. Elas conseguiram vencer no jogo da vida pelo basquete. Essa medalha de bronze (no Mundial) foi um ouro”.

Produtora executiva do documentário, Claudia Guedes aprovou o resultado da adaptação de sua obra para o cinema. “O filme é de muita sensibilidade. Era uma história que precisava ser contada”, comenta a escritora, que elogia a campanha das atuais jogadoras. “É uma frase brilhante (#Levanteaboladelas). Não queremos o que é dos homens. Queremos ser valorizadas tanto quanto eles. A sociedade sempre lutou por causa das diferenças. A igualdade para adversidade não existe”.

GERAÇÃO SEGUINTE – Diferentemente do livro, onde Claudia Guedes retrata (e muito bem) o basquete feminino brasileiro até 1971, o documentário fala também das façanhas de Paula, Hortência e Janeth, geração que só surgiu pelo esforço da anterior. “Elas quebraram paradigmas, plantaram sementes e foram muito importante para todas as conquistas da nossa geração”, comentou Paula.

“O resultado final (do documentário) ficou muito bonito e bem contado. Temos de exaltar o trabalho que foi feito porque é algo muito raro no País. É a história do nosso esporte e ela tem de ser documentada e preservada para que as futuras gerações saibam e deem valor a quem abriu portas e lutou para a melhoria da modalidade”, completou a ex-jogadora, campeã do mundo e duas vezes medalhista olímpica.

A ideia era lançar o documentário nos cinemas e na época dos Jogos Olímpicos de Tóquio. A pandemia do novo coronavírus não permitiu nenhuma coisa nem outra. Por isso, o lançamento será pelo www.mulheresacesta.com.br.