O compreensível desejo por um mundo mais simples e menos agressivo traz a idealização do passado, como se em tempos anteriores tudo fosse melhor. Não era. Mesmo a pandemia que enfrentamos hoje, em outras eras mataria muitíssimo mais pessoas, não podemos esquecer que a Peste Negra matou quase um terço da população europeia; embora a Covid-19 tenha viajado mundo afora em jatos de carreira, as vacinas foram desenvolvidas quase na mesma velocidade, ainda que não estejam devidamente universalizadas. As perdas provocadas por esta doença são evidentemente lamentáveis, mas seriam muito maiores sem os recursos da ciência atual.

E, absurdamente, há pessoas que negam a epidemia, ou propõe soluções tão fáceis quanto inócuas, e o pior é que muitos desses supostos negacionistas são profissionais de saúde, políticos com mandato e conselhos profissionais de medicina, os que não o fazem por injustificada ignorância certamente são movidos por oportunismo chulo e criminoso.

No século XVIII, como consequência tardia do Renascimento e das Reformas protestantes, surgiu o Iluminismo, movimento intelectual e filosófico que preconizava a prevalência da ciência e da racionalidade sobre o dogmatismo religioso e sua justificação de sistemas políticos centralizadores. Nos seguintes séculos XIX e XX desenvolveu-se o reinado da ciência, tecnologia e o florescimento da racionalidade, a separação entre Estado e Igreja, a compreensão por meio da lógica, que parecia conduzir a um mundo mais estável e ordenado. Isso não parece ser mais a realidade, Estados e religiões voltaram a misturar-se perigosamente, crenças ultrapassadas voltaram a ter seu espaço, assim como comportamentos retrógrados.

Parece que foi há muito tempo, em outro planeta, e na verdade não faz tanto tempo assim embora tenha ocorrido em outro milênio cronológico: o final do século XX e parte do atual tiveram características que poderiam despertar um otimismo que hoje não parece mais possível. Ainda que em diversas partes do mundo as guerras e tiranias cobrassem seu preço, e populações vivessem em condições de miséria, os políticos tinham como mote a busca da paz, a redução da pobreza e a proteção do meio ambiente. Ainda que isso parecesse hipocrisia, e na maior parte dos casos fosse mesmo, “a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude” no dito do pensador francês La Rochefoucauld; sincero ou não, o discurso que valoriza o bem parte do reconhecimento de que o bem é desejável e estabelece um ideal.

Hoje o cinismo mais cru substitui a hipocrisia, não há sequer a preocupação de esconder intenções golpistas na política ou negar roubos milionários de dinheiro público acobertados por mágicas judiciárias diversas. Raramente algum corrupto, candidato a ditador ou destruidor de florestas nega seus malfeitos, simplesmente afirma que não os cometeu, que não há provas ou que agiu de acordo com o que chama “a lei”. E certamente alguma lei, provavelmente escrita nos infernos e usada por advogados caríssimos, os protegerá.

Particularmente no Brasil atual, em que, além de uma pandemia interminável – porque desgovernada, sem uma política de saúde minimamente razoável, vacinação lenta – estamos ocupados destruindo nosso maior patrimônio, uma natureza exuberante e que regula muito do clima do planeta, perdidos na indisciplina generalizada da qual não se salva nenhuma de nossas instituições, entregues a uma milícia que determina a regra social em muitos estados, elogiando torturadores e violentos, perdendo nossa educação, que nunca chegou a ser muito boa.

Estamos carentes de uma governança efetiva, menos ideológica e mais pragmática, de realizações, pois a ausência de um Estado politicamente organizado, faz imperar o medo, tornando a vida das minorias muito difícil, exposta a violências e atrocidades.

A crise sanitária, assim como catástrofes naturais, ou conflitos de várias ordens, não nos permite esquecer o quanto as sociedades fragilizadas podem ser caóticas caso não exista uma condução política eficiente, sóbria e adequada, e um sistema educacional minimamente eficiente.

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.