“O que é a verdade?” A pergunta atormenta a humanidade há mais de dois mil anos. Seria simples afirmar que a verdade é o oposto da mentira, aquilo que se comprova pelos fatos; mas não é bem assim: se é fácil saber se algo material é falso, e ainda que até nesses casos se neguem as evidencias mais claras, é muito mais complicado determinar a verdade de ideias ou, pior ainda, de opiniões.

Muito do que se chama verdade está sujeito a visões variadas ao longo do tempo e das ideologias. Torna-se cada vez mais comum a reinterpretação de acontecimentos ou de personalidades históricas, ninguém está a salvo de ser “julgado” com os valores éticos ou morais de hoje pelo que possa ter feito há séculos. A derrubada de estátuas e reputações não considera o motivo pelo qual foram erigidas, as eventuais realizações científicas, culturais ou políticas perdem completamente o valor quando se comprova que seu autor possuiu escravos, discriminou mulheres ou foi racista; e embora seja compreensível que queiramos fazê-lo, não se pode simplesmente apagar a História porque seus protagonistas foram pessoas detestáveis ou pelo menos imperfeitas.

Há basicamente dois tipos de mentiras: as intencionais, quando o mentiroso sabe que está faltando à verdade e usa a afirmação falsa para algum objetivo – obter lucro material, pessoal ou político, ou defender-se de acusações; e as equivocadas, quando a pessoa acredita realmente no que fala, embora por vezes haja provas absolutas de que não é verdade. É bastante comum que os mentirosos intencionais formem plateia e seguidores entre os equivocados, caso da verdadeira epidemia de “fake news” que assola nossa política; e isso não é acidental, segue projetos elaborados com este objetivo.  

No atual império da mentira, que é o que mais vemos nas declarações e ações de políticos, jornais, redes sociais, é preciso ter em mente aquilo que Hannah Arendt nos afirma em um de seus textos: “As mentiras sempre foram consideradas instrumentos necessários e legítimos, não somente do ofício do político ou do demagogo, mas também do estadista. Por que será assim? O que isso significa quanto à natureza e dignidade do campo político por um lado, quanto à natureza e dignidade da verdade e da boa-fé por outro lado?”.

Evidentemente o problema não é novo, faltar com a verdade tem sido instrumento de governo desde tempos imemoriais, e até Santo Agostinho debruçou-se sobre o tema, deixando como legado uma série de reflexões que políticos deveriam conhecer antes de se aventurarem na vida pública, mas evidentemente se o fizessem adotariam outra postura, possivelmente perderiam a sede de poder, e portanto a pretensão política.

Uma das mais severas consequências do festival de enredos fabulosos em que estamos imersos parece ser o descrédito generalizado com que ouvimos qualquer narrativa diferente daquelas nas quais acreditávamos previamente, ou seja, mostramo-nos cada vez mais impossibilitados de mudar de ideias, aferrar-se à autenticidade de nossas antigas crenças parece o melhor no mar de invencionices que nos cerca.

Assim, elegemos como realidade o já aceito, por mais absurdo que isso seja, em parte por apego às antigas ideias, como se mudar denotasse fraqueza de caráter, ou fosse vergonhosa a perda da identidade grupal que nos caracterizava, embaraço de confessar na rede familiar ou de amizade que fulano ou beltrano é que estava certo…

A veracidade deveria ser um dever, mas muitas vezes tememos suas consequências, um velho ditado popular diz que a verdade dói, algumas vezes isso parece mesmo real, e a tendencia de escapar para a ficção se torna maior que nosso senso moral. Aceitar o que vem das redes sociais sem um mínimo de comprovação, louvar armas e violências como normais e até desejáveis na rotina comunitária, repetir agressões e aderir a condutas medievais parece nos levar cada vez mais longe da ciência e da autenticidade.

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.