Os manuais de graduação em Direito, usualmente, apresentam uma interessante ficção jurídica: a de que o casamento teria sido o padrão da família brasileira até muito recentemente e que, mais contemporaneamente, fruto de uma construção constitucional, tal modelo teria se tornado muito mais plural. Tal entendimento parte, em princípio, da premissa de que a legislação teria ampla capacidade criativa.

Costumo entender, contudo, que o papel da lei é muito mais reativo, em especial no Direito Privado. Ela se destinaria, neste sentido, muito mais a reconhecer eventuais efeitos, que a proibir a prática. Eventuais restrições relacionar-se-iam aos mais raros aspectos da vida social em que é necessário um controle de (i)licitude ou ordem pública. A abstração destes conceitos, entretanto, faz com que muitos sustentassem que seu espaço é mais amplo, de modo a ler os ‘reconhecimentos’ legislativos como se fossem ‘permissões ou proibições’. É aqui que reside o eterno debate sobre qual modelo familiar teria, ou não, sido acolhido pela legislação.

Desde que os colonizadores europeus aqui chegaram, condições fáticas impediram a adoção do modelo matrimonial pela população em geral. Com base em pesquisa históricas, talvez se pudesse afirmar que o casamento estava muito mais limitado a quem detinha patrimônio. A população em geral encontrou outras formas de se relacionar. Laços afetivos, como se sabe, tendem a independer de formalidades.

Os Tribunais viram-se confrontados com esta ‘rebeldia’ criativa. E, desde sempre, precisaram dar respostas a estes casos. Chegou-se no Brasil, por exemplo, a entendê-las como ‘sociedades de fato’, aplicando lógica de investimento e de Direito Societário àquilo que era uma família. E assim viram-se os togados a enfrentar famílias ‘desconstituídas’, monoparentais e homoafetivas. O interessante é que se insistia em afirmar que estes arranjos sociais – especialmente voltados à realização de direitos de personalidade – não podiam existir. Afinal, diziam, a lei não os mencionava! E a lei, coitada, inerte e culpada! Como se a criatura fosse responsável pela sua criação.

O Direito Privado não se presta a si mesmo. Sua função é pacificar a sociedade e permitir que os indivíduos possam exercer suas liberdades essenciais, responsabilizando-se e realizando-se por suas escolhas. Não cabe ao legislador, em especial no Direito de Família, pretender vir a ser o oráculo de moralidades.

O atual debate são os arranjos afetivos que extrapolam os limites da monogamia. Tema, aliás, sensível no Brasil que ainda penaliza dois casamentos simultâneos (bigamia, de acordo com o art. 235 do Código Penal). O legislador parece ter especial preocupação com a situação: classifica a união estável como uma relação monogâmica (art. 1.273 do Código Civil ), assim como o fazia para o casamento (art. 1.514 do Código Civil ).

A jurisprudência aliás, enfrentava o tema pelo filtro da moralidade, tentando identificar situações em que ‘amantes’ precisavam ser afastados(as) do patrimônio familiar. Este raciocínio, aliás, permeia a decisão do Conselho Nacional de Justiça que, em pedido de providências datado de 2018, negou a possibilidade de registro de uniões poliafetivas sob o argumento a “sociedade brasileira tem a monogamia como elemento estrutural e os tribunais repelem relacionamentos que apresentam paralelismo afetivo” e de que haveria “imaturidade social’ deste tipo de relacionamento . É com certa ironia, então, que se tende a esquecer o que o próprio Código Civil comanda (art. 1.513): “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.”
Atualmente, tramita o Projeto de Lei nº 4.302/2016 que visa proibir o “reconhecimento da ‘União Poliafetiva’ formada por mais de um convivente” . Nele se encontra apensado o Projeto nº 10.809/2018 com a exata redação contrária.

A questão que se coloca, no entanto, é até que ponto pode o legislador se imiscuir neste tipo de decisão. Com quem nos relacionamos é de interesse do Estado? Seria legítima este tipo de intervenção nas escolhas individuais? Costumo imaginar que elas não são sequer práticas, isto porque independentemente do que diga a lei, elas continuarão a existir e proliferar; tribunais serão chamados a se manifestar; a doutrina muito discorrerá e, no fim, algum efeito jurídico terá que ser dado. Neste aspecto é emblemático o esforço jurisprudencial para se reconhecer as chamadas famílias unipessoais para fins de proteção ao bem de família. Além disso, tais menções legislativas gerais e abstratas tendem a não sobreviver à realidade: note-se que em outros países uniões poliafetivas são comuns e legais. O Brasil recusaria efeitos previdenciários e alimentares a uma família poliafetiva que para cá migrasse?

O espaço de realização pessoal é marcado pela chamada autonomia privada – diga-se, assegurada constitucionalmente – e, portanto, não deve ser objeto de escrutínio público. Relações afetivas estão abrangidas pelas liberdades humanas mais básicas e, portanto, negar-lhes efeitos pesa substancialmente. E, se isso tudo não bastasse, negar “reconhecimento” ou “registro” apenas causa mais insegurança para terceiros (que eventualmente precisem conhecer a situação patrimonial daquela família até mesmo para atender à legislação).

Se a filiação independe de formalidades; se podemos escolher como nos identificamos e se podemos escolher com quem nos relacionamos; por que ainda discutimos a organização que fazemos disso tudo? O legislador brasileiro, com certeza, tem outras prioridades para abordar.

Frederico E. Z. Glitz é Advogado contratualista. Pós-doutor em Direito e novas tecnologias.