
Nas apresentações infantis é mais comum o uso de textos literários, lendas e contos populares
Ninguém sabe dizer ao certo, mas é possível que o teatro de bonecos seja mais antigo que o teatro de atores. A História sugere que as paredes das cavernas já eram usadas para um primitivo teatro de sombras que servia para entreter as crianças.
A criatividade humana permitiu o aperfeiçoamento da prática e, mais tarde, surgiram bonecos em barro, madeira, pano. Independentemente do material com que são construídos, os bonecos seduzem por seus movimentos ou pela história que contam. E as crianças costumam ser seus mais animados expectadores.
Apesar de ser impossível afirmar quando essa arte chegou ao Brasil, os primeiros registros são do século XVIII. Espalhada em todo o país, foi com o mamulengo do Nordeste que a arte se difundiu de forma mais intensa e foi reconhecida, inclusive, como Patrimônio Cultural do Brasil.
Patrícia Maia afirma que o teatro de bonecos pode tratar de qualquer temática. Segundo ela, há apresentações para adultos com temáticas exclusivas para essa faixa etária, e as infantis fazem mais comumente o uso de textos literários, lendas e contos populares.
Patrícia é mestra em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina, especialista e docente no curso de Contação de Histórias e Literatura Infantil e Juvenil na Fatum Educação. Além disso é graduada em Design Gráfico pela Universidade Estadual de Londrina; ventríloqua formada pela Maher Studios – Barefoot Bay, Flórida – EUA; especialista em Lazer – Habilitação em Educação Lúdica pela Universidade Estadual de Londrina; e tem experiência na área de Artes, com ênfase em Teatro de Bonecos e Contação de Histórias.
É com esse vasto currículo que ela nos ensina sobre o surgimento do Teatro de Bonecos, no mundo e no Brasil, e nos conta sobre as diferenças entre bonecos e técnicas.
TD – Quando surgiu o Teatro de Bonecos e com que objetivo?
PM – Muita gente acha que o Teatro de Bonecos é novo, mas na verdade, ele tem origens muito remotas. Há algumas histórias curiosas: supõe-se que Mestre Yan, um bonequeiro, teria vivido na China no ano 1.000 a.C. Segundo a lenda, um dos seus bonecos piscou atrevida e realisticamente para uma das concubinas do rei que condenou Mestre Yan à morte. Assim o mestre acabou revelando o mecanismo de seus bonecos ao rei para salvar sua vida. De acordo com Ana Maria Amaral (1996), uma das maiores pesquisadoras de Teatro de Formas Animadas no Brasil, os bonecos surgiram no Oriente, muito ligados à máscara e com características sacras e ritualísticas, entretanto, chegando ao Ocidente se ligaram à música e à dança adquirindo traços cômicos e satíricos até se tornarem como os conhecemos hoje. Ainda segundo a pesquisadora, independentemente de ser sacro ou cômico, o boneco é uma representação icônica, “é uma analogia. É um reflexo nosso. É a nossa representação reduzida. É feito à nossa imagem e semelhança: Deus/homem, homem/boneco.” E é incrível como realmente isso acontece quando o boneco está em cena. Há uma identificação do público com aquele ser animado por seu manipulador, a ponto de emocionar, enternecer ou criar repulsa. Lembro-me de certa vez em que contávamos a história da Chapeuzinho Vermelho no Sesc Londrina. No momento em que o lobo entra em cena “escondido” atrás de uma árvore dizendo que é o “anjo da floresta” para enganar a personagem, uma criança no meio da plateia gritou com toda força: “É mentira, Chapeuzinho! É o lobo! Ele tá atrás da árvore!” Acredito que além da identificação, parte do “encantamento” gerado pelo Teatro de Bonecos venha da sua dualidade. Afinal o boneco é ilusão, é irreal enquanto ser vivo, é inanimado, mas quando animado ele ganha vida, recebe uma ânima – sua “alma” – e então torna-se real. Assim, o boneco é atraentemente contraditório pela sua ambiguidade e é assim que ele nos cativa.
TD – Quando chegou ao Brasil?
PM – Segundo Hermilo Borba Filho, outro grande pesquisador brasileiro do Teatro de Bonecos, é impossível precisar quando os bonecos chegaram no Brasil. Não há nenhum tipo de registro, carta, documento que traga algum indício de como ou de quando os bonecos desembarcaram em terras tupiniquins. Entretanto, de acordo com ele, podemos supor que o padre Anchieta tenha usado desse recurso como uma forma de espetáculo para catequisar os indígenas, e que posteriormente os negros tenham trazido alguma forma de espetáculo com bonecos e que as duas formas se entrecruzaram, juntando-se à dos europeus. Mas tudo isso é bastante nebuloso e fica à cargo da imaginação. O que se sabe com certeza é que o primeiro registro de algum tipo de boneco surgiu no século XVIII e foi constatado que nessa época haveria três grupos distintos de Teatro de Bonecos. O primeiro grupo seria o dos “títeres de porta”, em que um tecido era colocado na porta de entrada da casa, dividindo-a ao meio, na parte de cima onde ficava um vão, aparecia o boneco manipulado pelo bonequeiro atrás do tecido. As pessoas que passavam na rua paravam para assistir o espetáculo e ofertavam dinheiro ao bonequeiro. O segundo grupo era dos “títeres de capote”, um tanto mais precário que o de porta, era um homem-palco, pois esse era feito com um capote (casaco grande) que o bonequeiro vestia, dentro dele o bonequeiro tocava uma pequena viola e uma criança, também dentro do capote, manipulava o boneco nas feiras e pátios das igrejas em dias de festa. O terceiro grupo era dos “títeres de sala”, esse teatro foi o que perdurou e se desenvolveu, com uma estrutura de palco para os bonecos e que mais tarde se tornou a estrutura usada até hoje para o teatro mamulengo.
TD – No Brasil é comum em todas as regiões ou tem maior representatividade em algum estado?
PM – O Teatro de Bonecos acontece em todas as regiões do Brasil, mas é no Nordeste que surgiu o mamulengo (um tipo de fantoche), e que ficou conhecido em todo o país. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu em 03 de março de 2015 o Teatro de Bonecos Popular do Nordeste (ou Mamulengo) como Patrimônio Cultural do Brasil. Essa preservação das nossas manifestações culturais é fundamental para nossa memória e identidade enquanto povo brasileiro. Mas há um tipo de boneco que é genuinamente brasileiro e que acredito também deveria ser considerado patrimônio cultural do Brasil. Se trata do Teatro Lambe-lambe, criado na Bahia em 1989 por Denise dos Santos e Ismine Lima. As bonequeiras se inspiraram nos fotógrafos lambe-lambe e construíram o teatro de bonecos dentro de uma caixa. O espetáculo é apresentado para uma única pessoa por vez e dura de 1 a 3 minutos. É uma experiência singular assistir esse tipo de teatro. Podemos citar ainda alguns grupos brasileiros como Giramundo (Belo Horizonte), Sobrevento (São Paulo), Cia Manipulando Teatro de Animação (Maringá), Cia Gente Falante (Porto Alegre), Grupo Girino Teatro de Animação (Belo Horizonte), entre outros. Os festivais também acontecem em várias partes do país, como a Mostra Lambe-lambe de Curitiba, Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Canela, Festival Internacional de Teatro Popular de Bonecos de Brasília, Festim – Festival de Teatro Miniatura e Teatro Lambe-lambe de Belo Horizonte, Fita – Festival Internacional de Teatro de Animação de Florianópolis e o Festebom – Festival de Teatro de Bonecos de Maringá.
TD – Quais as diferenças entre bonecos, fantoches e marotes?
PM – Não há um acordo estabelecido para a nomenclatura das técnicas do Teatro de Bonecos. Porém, a denominação dada por Ana Maria Amaral é uma excelente referência. E são dela as definições que acredito serem as mais adequadas. Boneco é a terminologia geral usada para se referir a todas as técnicas. Fantoche é o pequeno boneco que serve na mão como uma luva, e cuja origem é chinesa. O fantoche não fala abrindo a boca, mas movimentando as mãos. No caso da “luva chinesa” (um outro tipo de fantoche) ele também possui pernas e parece realmente andar. O marote é o boneco que abre a boca para falar. Esse é um tipo muito conhecido e usado no Brasil sendo chamado, pela maioria das pessoas, de fantoche. Há ainda muitas outras técnicas como o boneco de vara, o teatro de sombras, o marionete, a pupi siciliana, o bunraku, a manipulação direta, o teatro negro, o teatro de papel,a ventriloquia e outras técnicas que se mesclam.
TD – Em que situações um é mais adequado que outro?
PM – A escolha da técnica usada em uma determinada história ou situação depende de muitas questões envolvidas. O tipo de história, a quantidade de personagens, as exigências de cenário (ou não), as sensações e as impressões que se quer passar, tudo irá interferir na escolha do tipo de boneco. Portanto, não há um boneco mais adequado do que outro, mas sim o objetivo do bonequeiro.
TD – A manipulação de bonecos necessita de que tipo de preparo, estudo ou curso?
PM – É fundamental que o bonequeiro conheça bem o tipo de boneco que está manipulando e quais as possibilidades que o boneco proporciona em cena. Isso requer treino e ensaio até que o manipulador domine bem a técnica escolhida. O tipo de preparo dependerá do tipo de técnica. Um fantoche é de certa forma mais fácil de manipular do que um marote, e um marote possui uma manipulação mais fácil do que um marionete (boneco de fio) e uma ventriloquia. Contudo, independentemente do tipo de técnica é sempre muito importante saber manipular bem, se quiser que seu Teatro de Bonecos tenha qualidade. Para quem quiser aprender é possível encontrar cursos de manipulação e confecção de bonecos ofertados pelos grupos de Teatro de Bonecos. A Cia Zoom, por exemplo, oferece cursos de manipulação, confecção, ventriloquia e contação de histórias.
TD – O Teatro de Bonecos pode ser um instrumento para o aprendizado das crianças? Em que medida?
PM – O Teatro de Bonecos, assim como a literatura, as artes plásticas e a música, é uma forma de arte. E como tal não tem um “compromisso didático”. O compromisso do Teatro de Bonecos é transmitir a história, mas como a criança irá receber essa história é de competência da própria criança. Ela pode aceitar ou não, pode entrar no jogo ou não. Todavia, isso não impede que bonecos sejam usados como uma forma didática em sala de aula. O aprendizado sempre é mais rápido quando é prazeroso, e a ludicidade do boneco é uma grande ferramenta para auxiliar o ensino de qualquer conteúdo. Certa vez fomos contratadas para criar uma peça sobre reciclagem para a prefeitura da cidade de Ibiporã (PR). O sistema de reciclagem estava sendo instalado na cidade e nós percorremos toda a rede municipal de ensino para dizer às crianças como separar o lixo. O projeto foi um sucesso, as crianças levavam a informação para casa e repassavam aos pais. Esse é um exemplo de como é possível usar os bonecos didaticamente.
TD – O que torna bem-sucedida a apresentação de uma história com a utilização de bonecos?
PM – O sucesso de uma apresentação com bonecos depende primeiramente de se conhecer bem o texto. O segundo elemento fundamental é o ensaio, sem o qual o desastre é praticamente certo. Isso porque, além da manipulação e do texto, é necessário acertar as vozes dos personagens, o momento de trocar cada personagem (isso pode ser mais fácil ou mais difícil dependendo do boneco), acertar os elementos cênicos, acertar entradas e saídas dos personagens com os outros manipuladores, enfim, são muitos detalhes que se não forem ensaiados podem desandar toda a apresentação.
TD – É comum que as apresentações tragam temáticas sociais?
PM – Sim. O Teatro de Bonecos é como o teatro de atores, ele pode tratar de qualquer temática, inclusive há Teatro de Bonecos para adultos com temáticas exclusivas para essa faixa etária. No caso de temáticas infantis é muito comum o uso de textos literários, lendas e contos populares.
TD – Existem histórias melhores ou piores para serem apresentadas por meio dos bonecos?
PM – Não. Existem possibilidades e não-possibilidades dos bonecos que são importantes que o bonequeiro conheça. Dependendo da técnica usada algumas cenas podem ser bastante complicadas, por exemplo, quando surge uma multidão no texto e ela é imprescindível para a cena. Dependendo do tipo de boneco, será necessário fazer adaptações. Para uma peça com bonecos marotes é bem difícil ter uma multidão em cena. Entretanto, para bonecos de vara (bonecos que são figuras de papel ou madeira) é algo bem simples. O teatro de bonecos, contudo, vem se apropriando de outras artes. Como exemplo podemos citar o espetáculo “As aventuras de Alice no País das Maravilhas” (com projeção em tela) da companhia Giramundo de Belo Horizonte. Enfim, o que realmente precisa ser levado em conta é se determinada história é mais viável com esse ou aquele tipo de boneco e quais adaptações serão necessárias.
TD – O que é ventriloquia?
PM –Ventriloquia é uma técnica que consiste em não mover os lábios ao falar, dando a ilusão de que um objeto ou boneco é quem fala e não o ventríloquo.
TD – O que é preciso para se tornar um ventríloquo ou uma ventríloqua?
PM – Para se tornar um ventríloquo é fundamental ter o profundo desejo de aprender a técnica. O motivo dessa premissa é que a ventriloquia exige comprometimento, disciplina e dedicação diárias para seu aprendizado. Outra coisa necessária e indispensável é ter realmente um tempo diário de estudo. Pode ser 10 a 15 minutos, mas precisa ser diário. Além desses dois requisitos, não é necessário nenhum prévio conhecimento para o aprendizado da ventriloquia. Se a pessoa tiver alguma experiência com canto ou técnica vocal isso impulsionará seu aprendizado, mas quem nunca trabalhou com a voz ou mesmo com boneco pode igualmente aprender a técnica. A Cia Zoom montou o primeiro curso de Ventriloquia estruturado para a língua portuguesa e com certificado do país.
TD – Você tem alguma experiência com Teatro de Bonecos ou Ventriloquia que poderia compartilhar?
PM – Com certeza! Tenho muitas histórias. A primeira vez que fiz ventriloquia em público fiquei muito nervosa. Eu havia prometido fazer ventriloquia em uma festa de aniversário, mas não estava segura de que iria funcionar. Temia que as crianças olhassem para mim e dissessem a frase que faz todo ventríloquo iniciante tremer: “É você que está falando!”. Mas, para minha surpresa depois de alguns minutos que eu estava falando com a Pati (e até então eu pensei que ninguém tivesse reparado que eu estava fazendo ventriloquia) uma criança olhou para mim com uma carinha intrigada e disse: “Ela fala sozinha?” referindo-se à boneca. Eu quase saí pulando de alegria e pensei: “Funciona! Funciona!” De outra vez eu estava apresentando a Pati, e uma criança perguntou: “Pati, você toma banho?” Eu levei um susto, mas a Pati tinha a resposta: “Não! Eu não tomo banho porque eu não posso me enxugar, aí tenho que ficar dependurada de cabeça pra baixo no varal até secar. E se não secar direito, eu mofo! Por isso, eu não tomo banho, não!” Até eu me surpreendi com a resposta. Os bonecos têm esse poder de nos surpreender! Houve uma garotinha que ficou me rodeando e insistindo para que eu contasse como a Pati falava, eu fiquei firme e sempre respondia às suas investidas com a frase: “Não posso contar, é segredo!” Quando a menina percebeu que eu não iria ceder ela ameaçou: “Também quando eu tiver um segredo mágico não vou te contar!”E uma outra experiência marcante pra mim foi quando estive no Centro de Atendimento a Pessoas com Deficiência Intelectual. Eu me recordo que ao chegar ao centro me mostraram como eram feitos os atendimentos, e em uma das salas havia uma paciente muito agitada e nervosa. Depois da visita, montei o palco, os pacientes chegaram e iniciei a apresentação. Eu percebi que a moça que estava agitada havia se acalmado e se encontrava na plateia. Em determinado momento apresentei dois personagens, Zé Pião (um boneco marote grande) e Zezinho (um boneco marote pequenininho). O Zezinho entrava e saía de cena incomodando Zé Pião, de repente eu vi uma sombra e quando percebi a paciente estava em cima do Zezinho. Eu fiquei estática e ela abraçou o bonequinho com todo carinho. Eu saí da apresentação sensibilizada com a atitude dela.
Acompanhe nos vídeos o trabalho de Patrícia com a boneca Pati e com o Visconde de Sabugosa:
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*Fonte de pesquisa para temas e entrevistas: Instituto Fatum.