Entre os inúmeros impactos do isolamento social, um dos mais expressivos é o avanço exponencial da internet, que provocou intensas mudanças nos hábitos digitais da sociedade. Esse progresso reverbera o conceito de modernidade líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, no qual tudo que era estável se liquidificou e os indivíduos, para vivenciar uma sensação de pertencimento, agora precisam expor sua vida privada e opiniões em frações de segundos. Essa volatilidade da coletividade impacta diretamente nas interações do ambiente de trabalho.

E com 4,66 bilhões de pessoas conectadas em todo o mundo em janeiro de 2021, segundo relatório da We Are Social e da Hootsuite, seria no mínimo ingênuo imaginar que a informatização do trabalho não repercutiria no Poder Judiciário, especialmente na esfera trabalhista.

O direito constitucionalmente assegurado à liberdade de pensamento se apresenta das mais variadas formas, traduzindo-se em liberdade de consciência, crença, manifestação de pensamento e liberdade de expressão. Porém, parafraseando o filósofo inglês Herbert Spencer, “a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”. É impossível dissociar a responsabilidade do indivíduo daquilo que ele opina, propaga ou sustenta.

Caracterizada como direito de personalidade, a liberdade de pensamento tutela a sociedade contra o arbítrio e as soluções de força. No entanto, como bem observado pelo Ministro Alexandre Agra Belmonte, já nos idos de 2012, essa liberdade pode sofrer restrições no âmbito das relações de trabalho, pautada em três pilares: necessidade da regra imposta, a sua adequação e a proporção em que ela é estabelecida.

Logo, o desafio enfrentado pelos operadores do direito é assegurar equilíbrio entre a proteção da liberdade de expressão, da dignidade da pessoa humana, dos direitos de personalidade e, ao mesmo tempo, sopesar os direitos transindividuais.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil faz parte, ratifica o direito à liberdade de pensamento e expressão previsto na Constituição. Ao mesmo tempo, ela traz algumas ressalvas, como a possibilidade de censura prévia e proibição de apologia à guerra, ao ódio e ao preconceito.

Por sua vez, a Lei contra o Preconceito prevê a majoração da pena nos casos em que a ação é feita em qualquer meio de comunicação social, desde a imprensa até as redes sociais.

Não por razão diversa, o Marco Civil da Internet, ao mesmo tempo que assegura o amplo exercício da liberdade de pensamento, tem em seus princípios a proteção aos direitos humanos, à diversidade e ao exercício da cidadania nos meios digitais.

Todos esses regramentos consolidam um regime de liberdade pessoal e justiça social. Dessa forma, se o Estado pode punir um indivíduo caso ele ultrapasse os limites da liberdade de expressão, o mesmo cabe a um empregador em relação aos seus empregados. Por conta da relação contratual estabelecida, ele não pode se eximir de sua função social de exercer a atividade econômica em prol dos interesses da coletividade.

Não restam dúvidas quanto ao cabimento do exercício do poder disciplinar pelo empregador em hipóteses de ofensa à honra e à imagem da empresa por parte do empregado . O mesmo ocorre quando o trabalhador externa em uma rede social fatos distintos dos que foram relatados para a empresa — como ao usar um atestado falso e, ao invés de repousar, praticar atividades físicas e publicar uma foto online.

No entanto, o que se propõe é a discussão dos limites desse poder em hipóteses que não estão — em uma primeira análise — diretamente relacionadas ao contrato de trabalho. Como tangenciar essa fronteira?

Primeiro, não se pode esquecer que o contrato de trabalho pressupõe a boa-fé de ambas as partes, diretrizes que devem se manter antes, durante e após o término da relação de trabalho. Ela é a norteadora e reflete a própria essência do contrato.

O papel do empregado, portanto, ultrapassa o expediente na empresa. As impressões digitais deixadas nas redes sociais — relacionadas ou não à empresa — podem deixar marcas na relação de trabalho. E uma marca negativa pode colocar em risco todo o negócio, prejudicando não só o empregador, como a coletividade que se beneficia da atividade empresarial — outros empregados, projetos sociais desenvolvidos e até a atividade econômica que ela estimula, seja no comércio das redondezas ou até macroeconomicamente.

A sociedade, ciente dessa função social das empresas, tem aumentado a cobrança por atitudes mais assertivas em relação aos atos praticados dos seus empregados. Um exemplo é o caso dos torcedores brasileiros que, durante a Copa do Mundo da Rússia, se aproveitaram do desconhecimento da língua portuguesa dos estrangeiros para assediar mulheres russas com termos pejorativos, publicando as ofensas nas redes sociais. A repercussão foi tanta que implicou na instauração de procedimentos disciplinares e até rescisões contratuais.

É importante frisar, porém, que a atitude do empregador em casos como esses não visa cercear a liberdade de expressão dos empregados, mas sim repudiar atos contrários aos princípios éticos e morais da empresa e da sociedade como um todo.

Priscila Kirchhoff é sócia do grupo trabalhista do Trench Rossi Watanabe, e Viviane Scrivani é associada do grupo trabalhista do Trench Rossi Watanabe