System Crasher, da alemã Nora Fingscheidt, apresenta a infância sob uma face menos comum. Num tempo e numa sociedade em que crianças são santificadas e consideradas sinônimos de doçura e inocência, ela nos revela um lado muito menos amigável da infância através de Benni, de nove anos. Ela é agressiva, revoltada, imprevisível e foi expulsa de todas as escolas que frequentou. Não mora com a mãe, que tem medo dela. O padrasto não a aceita.

Benni foi mandada para uma instituição de crianças difíceis e, lá também, não deixa de criar problemas. Convém especificar: problema, quando se trata dela, quer dizer agressão física mesmo. Quando tudo parecer dar resultado nulo, a instituição recorre a Micha, especialista em agressão infantil, que tenta ganhar a confiança da menina.

Nora Finsgscheidt nasceu em 1983 e System Crasher é apenas seu segundo longa-metragem. O primeiro foi um documentário de conclusão do curso de cinema. Esta breve biografia nos deixa ainda mais espantados pela maturidade revelada neste duro retrato infantil. Não se trata apenas da temática. Nora move a câmera quase sempre próxima da personagem, como se estivesse fazendo um registro documental de uma pessoa em estado crítico.

Por outro lado, é interessante (e instrutivo) perceber como uma sociedade madura evita culpar uma criança com tais distúrbios. Antes, a culpa, ou melhor, a responsabilidade, parece recair sobre adultos incapazes de compreendê-la e suportar a convivência com ela. E a verdade é que Benni (Helena Zengel, em bela interpretação) mantém atitude ambivalente. Detestável e imprevisível, é, também, capaz de expressar e despertar ternura nos outros.

Mas, enfim, todos os tratamentos são tentados com Benni, da ingestão forçada de medicamentos para “acalmá-la” a doses fartas de carinho e compreensão. E até mesmo o companheirismo administrado por Micha (Albert Schuch), que leva a criança-problema para sua cabana no campo, sem TV e sem internet, numa espécie de terapia pelo isolamento.

Virtudes cinematográficas (que são grandes) à parte, System Crasher nos mostra o valor dado à infância em países desenvolvidos. Tudo é tentado pela menina. Ao assistirmos ao filme, não conseguimos evitar a pergunta, constrangedora: o que teria acontecido com ela se tivesse o azar de nascer em um país como o Brasil? Segundo, a surpresa ao constatar que mesmo temas-tabu, como a infância problemática, podem e devem ser tratados de maneira adulta. Também nos chama a atenção para o fato de que nem todos os problemas podem ser resolvidos. E nem todas as obras de ficção precisam reservar um final redentor para o público. Este pode aguentar uma dose de realidade. Tanto que o filme tem sido aplaudido ao final nas sessões da Mostra.

Adolescente

Se os problemas da infância aparecem em System Crasher, os da adolescência afloram em A Garota com a Pulseira, do francês Stéphane Demoustier. Lise (Mélissa Guers) é uma garota normal de 16 anos, até se ver envolvida num homicídio, quando sua melhor amiga aparece morta. Basicamente, A Garota com a Pulseira é um filme de tribunal, em que acompanhamos os debates e os torneios verbais entre promotoria e defesa. Mas, o público notará que é um filme de tribunal bastante diferente daqueles a que nos acostumamos a ver.

A vida de Lise é desvelada diante dos jurados, provas e contraprovas são apresentadas e o resultado revela a complexidade da vida humana. Mesmo a de uma vida ainda iniciante. Como buscar a verdade, se a acusada nega tudo e não existem provas para inculpá-la, mas apenas indícios? A Garota com a Pulseira, entre outras coisas, é também a constatação da frase de Nietzsche sobre a verdade que mora no fundo de um poço.

O melhor Assayas. A Mostra começou com a exibição de Wasp Network, o empolgante livro de Fernando Morais adaptado pelo francês Olivier Assayas. Quem gosta de filme político, apreciou o tom dessa história da Guerra Fria, de embates entre opositores de Fidel Castro e agentes cubanos infiltrados nas organizações de Miami. O tônus político de Assayas pode ser hoje conferido em sua melhor versão, a de Carlos, o Chacal, com seus amazônicos 334 minutos de duração. Nesse tempo, ele traça um perfil eletrizante do militante e terrorista venezuelano Carlos, do seu início idealista até os desvios de finalidade da luta armada. O papel-título é do também venezuelano Edgar Ramírez, magnífico.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.