O homem é motorista de ambulância, e como se pode imaginar deve experimentar dias de esgotamento e desassossego. Por outro lado, há também os outros, os dos plantões enfadonhos, de 24hs sem chamado. Foi em um desses. Uma saída de horário de almoço. Ele precisava de um pouquinho de sol, procurou uma praça, e sentou ao lado da caixa de doação de livros. Pensou em não pegar nenhum, mas o banco e o sol eram tão convidativos. Eu poderia até dizer que pegou o primeiro que viu, mas quem pega o primeiro? Escolheu. E não só leu, como levou para casa o catálogo de uma exposição de ready mades em homenagem, claro, a Duchamp.
E embora nunca tenha sido um entusiasta da arte – nunca tenha sequer parado para pensar sobre ela –, ficou comovido. A partir dali, foi tomado por um desejo desmedido de produzir, e assim o fez. Dia após dia, juntou pedaços de tudo que lhe parecia feito para se juntar. Uma coisa com outra, outra com uma, até que começaram a surgir objetos invulgares e à medida que eles surgiam, aumentava seu arrebatamento. Ele queria entender. Primeiro o que naquele catálogo o movia, depois por que e como.
Com seu primeiro objeto em uma mão e o livro na outra, aproveitou a folga do serviço médico e andou até a galeria que expunha trabalhos de um dos artistas contemplados logo nas primeiras páginas do livro. Foi atendido por uma moça estudadíssima que, à primeira vista, lhe lançou um olhar preguiçoso, não, não tinha nenhum interesse na peça. “Não vendemos esse tipo de trabalho”. Mas ele não queria vender, queria entender, já disse. E aí que voltou à praça.
E uma praça não para em pé em uma cidade sozinha, certo? Ela tem que estar ladeada por ruas, prédios, casas, padarias, escolas, restaurantes, farmácias – inúmeras farmácias – e lojas. Ele sentou no mesmo banco, olhou para a cidade e deu de cara com uma loja. Por alguma razão, a loja lembrava, ainda que de raspão, aquela agonia do livro. Nem preciso dizer que, na próxima folga, a loja, o cara da loja, o motorista e o objeto se encontraram para uma tarde longa, preciso?
Ocorre que o ‘cara da loja’ conhece bem essa agonia. Ih, se conhece… O motorista repetiu todas as palavras e era imprescindível que ele ouvisse cada uma delas. Ele ouviu. Sílaba por sílaba. E elas encontraram conforto em seus ouvidos, ou melhor, encontraram companhia. Também já quis entender. Anos atrás, fora beliscado por Duchamp. Vinha se deixando beliscar até então. E já nem se importa com o por quê, o quando e onde. “Bem vindo”, foi o escolheu dizer.
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