Nos ambientes escolares de todos os níveis, o conceito de tolerância tem sido muito discutido e até estimulado, mas temos enfrentado também um acentuado uso político deste debate: sempre consideramos a própria posição como tolerante e a dos demais intolerante, e tudo que transcende nossa tolerância pessoal definimos como ultrapassando os limites adequados da tolerância. 

Qual seria, então os “limites” da tolerância? Costumamos estabelecer que seriam aqueles em que a intolerância inicia, ou seja, tolerância apenas com os tolerantes; questão de reciprocidade.

Reflexões muito antigas parecem reforçar esta tese: desde as religiões que coagem a consciência e, portanto, não teriam direito de serem toleradas, famosa nas frases de John Locke, importante filósofo inglês que já em meados de 1670 declarava que “aqueles que não possuírem e professarem o dever de tolerar todos os homens em matéria de simples religião” não deteriam “nenhum direito de ser tolerados pelo Magistrado”. Rousseau, teórico político, em 1750 formulou um dogma negativo em sua declaração de fé dos cidadãos, o da intolerância; e Voltaire, escritor e iluminista francês já dizia “os homens devem evitar o fanatismo para merecerem a tolerância”.

Mais recentemente, vários eventos corroboram estas afirmações e mostram o quanto não tem sido tranquilo conviver com o conceito. Em 1995, uma determinada região alemã obrigava a fixação de um crucifixo em todas as salas de aula em rede pública, e isso foi rapidamente declarado inconstitucional; até hoje não se conseguiu esclarecer se o dispositivo seria intolerante com relação às minorias ou se não seriam as minorias que objetavam à ostentação de crucifixos que estariam sendo intolerantes.

Na França, o debate sobre a permissão do uso do véu islâmico nas escolas imediatamente acirrou o debate sobre vesti-lo ser uma intolerância, ou proibir o uso é que a caracterizaria. Quando alguns governos aprovam lei que permite as uniões homossexuais com direitos e deveres de qualquer casamento, muitos protestam que tolerância não exige igualdade legal; e em muitos países vemos o recrudescimento de violentos ataques racistas e a estrangeiros, e periodicamente apelamos à maior tolerância em relação a pessoas culturalmente e etnicamente diferentes, incluindo a promoção de políticas de “tolerância zero” contra aqueles que se utilizam da violência e da intransigências de várias ordens.

É sempre pertinente pensar no contexto, como por exemplo na relação entre o tolerante e o tolerado, pois entre pais e filhos, ou entre vizinhos, temos compromissos diferentes que entre desconhecidos; a também compreender quais são os sujeitos da ação ou objetos dela, pois costuma ser essencial que crenças ou as práticas toleradas sejam consideradas erradas ou relevantemente inadequadas, pois muitas vezes, no lugar de tolerantes, somos apenas indiferentes ao assunto.

Um paradoxo bem conhecido é ser errado não tolerar o que é errado, e por isso os limites da tolerância precisam estar num ponto no qual as razões para a rejeição se tornam mais fortes do que as razões para a aceitação, e este é um terreno minado, existem práticas e crenças com as quais estamos de acordo, as toleráveis que são consideradas inadequadas, mas ainda podemos aceitar, e o francamente intolerável.

Só se é transigente voluntariamente, caso contrário estamos sob coação, e no Brasil temos o caso especial da tolerância à corrupção, ao “rouba mas faz”, que vemos muitos repetirem incessantemente. Aceitação costuma ser considerada uma virtude, e a malversação de recursos públicos e um certo orgulho do “jeitinho brasileiro”, que desrespeita a separação entre o público e o privado, torna a corrupção uma tolerância cotidiana, que chega mesmo a ser legitimada.

“A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”, disse o filósofo da ciência Karl Popper em 1945, certamente observando as consequências da segunda Guerra Mundial.

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.