Pais e professores percebem o momento em que a criança saberá distribuir com clareza entre ela e o outro, os atos e estados que ela percebe no mundo exterior e no interior, esse fenômeno chama-se transitivismo .

Na verdade, ensinamos isso às crianças em cenas corriqueiras: a mãe que diz “ai” ou “que dor” quando o filho se machuca, quando batemos e afirmamos apanhar, quando vemos outra pessoa cair e parecemos sentir a queda, ou seja, trocamos o jogo de posições entre o eu e os demais.

Fazemos, portanto, uma hipótese de um saber sobre a criança, dando um nome que designa a experiência dela, relatando o que ela estaria sentindo,  identificando o discurso a ela dirigido, e este é um procedimento que passa pelo corpo; que faz com que o mundo tome forma e consistência.

Vários psicólogos, como Wallon, mostram que tal fenômeno é frequente na alienação mental, onde é grande a impossibilidade de compreender o outro sem ser pela comparação consigo próprio, como um navegador que vê uma margem terrestre em movimento quando na verdade é ele que se movimenta. O interior e o exterior podem confundir-se na experiência sempre incompleta de nossos sentidos, e passar a nos imaginar como uma unidade distinta de nossos pais e do mundo que nos rodeia, apesar de mantermos uma imagem do outro como referência, é condição indispensável para uma futura personalidade equilibrada.

Da mesma forma, o desenvolvimento da plena cidadania implica na compreensão da intenção pedagógica e dos gestos autoritários que subsistem nos pensamentos extremados, tanto no pensamento político de direita quanto de esquerda, pois ambos desfiguram a verdade ao nos impor a imagem de uma comunidade gentil, sem preconceitos (embora exiba claramente comportamentos machistas, misóginos, racistas),  ou então hostil e conflituosa, em que jamais atingiremos a igualdade ou a convivência pacífica.

Ficamos entre estas duas versões, assolados por mensagens inverídicas vindas por nosso celular – hoje mais comum que a leitura de outros veículos como jornais e sites noticiosos idôneos, pois produtores de fake news estão em alta, e nos levam sem sutilezas às representações, ou seja, a um recontar da realidade, tornando a vida uma construção narrativa.

E como a vida é sempre, necessariamente, uma história que contamos a nós mesmos como sujeitos, através da rememoração de eventos, de verdades que assumimos, de pessoas que admiramos por bons ou maus motivos, terminamos por construir avatares que atuam como julgamos que seria moderno ou causaria inveja.

A consequência inescapável é a criação de realidades internas que se sobrepõe às externas; em psiquiatria este fenômeno, quando exacerbado até o descontrole, é denominado esquizofrenia; doença mental passível de tratamento em muitos casos, mas produtora de grande sofrimento para os circunstantes e para o próprio paciente.

O reino mágico das crianças, com amigos imaginários e histórias fantasiosas, é parte do crescimento e da construção da personalidade, mas tem seu limite saudável no tempo e no grau de maturidade alcançado. As figuras de apoio, dos bonecos simples aos mais sofisticados brinquedos, são companhias importantes a reforçar fantasias e “aventuras”, mas não devem substituir indefinidamente a realidade, ou contribuir para reinventa-la, em um momento da vida o olhar e o pensamento se voltarão naturalmente para o concreto.

Já fomos chamados de “país do carnaval”, título que aceitamos como elogio à alegria com que se comemoram aquelas festas populares. E nunca houve nada de desabonador ao nosso povo por manifestar sua alegria em avenidas e salões, terminadas as festas tiramos a fantasia e voltamos à realidade. Foi apenas nestes tristes últimos anos que nossos dirigentes preferiram eternizar a miragem e a alienação.

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.