
“A Saúde é um direito de todos e dever do Estado.” Em sua clareza exemplar, esse belo enunciado da Constituição Federal de 1988 trouxe grandes desafios para nosso país.
A partir dele, constituiu-se o SUS (Sistema Único de Saúde), que completa 35 anos neste 19 de setembro, data em que foi sancionada a Lei 8.080, oficializando seu funcionamento.
São poucas as políticas públicas que representaram e representam tanto para a sociedade, logrando êxitos tão representativos.
Até a chegada SUS, a assistência de saúde pública brasileira era restrita aos trabalhadores vinculados à Previdência Social, ficando o restante a cargo de instituições filantrópicas, que apesar dos muitos exemplos de dedicação e trabalho duro não tinham como absorver toda a demanda.
O SUS mudou completamente o cenário:
- É universal, ou seja, sem nenhuma discriminação de atendimento. Portas abertas a todos.
- Presta atenção integral à saúde, com atendimentos de baixa, média e alta complexidades – das situações mais simples aos casos mais complexos, como transplante de órgãos.
- Presta serviços de vigilância epidemiológica, sanitária, ambiental e assistência farmacêutica.
- Não tem nenhum custo para as pessoas.
Nenhum outro país do mundo tem um sistema como esse para atendimento de uma população com mais de 200 milhões de pessoas como a nossa.
Não foi coincidência que nessas três décadas e meia a saúde tenha tido tantos avanços. A expectativa de vida dos brasileiros e brasileiras no período passou de 65,3 anos para 76,5 anos– 11 anos a mais. Diretamente ligada a esse avanço, a mortalidade infantil foi reduzida em 76% – de 47 óbitos a cada 1.000 nascidos vivos para os atuais 11.
O SUS é responsável por fatores centrais dessa evolução: expansão do atendimento público (incluindo o pré-natal e o parto assistido), programas de vacinação em massa, controle de epidemias, melhorias da vigilância sanitária e da promoção mais ampla de saúde (com acompanhamento de crianças e desenvolvimento de políticas de nutrição), entre outras.
Esse trabalho fez do Brasil uma referência mundial para várias ações, como a vacinação, o combate ao tabagismo e a prevenção da aids, por exemplo – fruto de um trabalho descentralizado e de gestão tripartite entre União, estados e municípios.
Foi graças ao nosso SUS que superamos os desafios do enfrentamento a pandemia de covid-19. Enquanto países em todo mundo tiveram inúmeras dificuldades para atender as pessoas e vaciná-las em tempo recorde, as equipes nos municípios brasileiros, apesar de todas as dificuldades, foram fundamentais para que mais pessoas fossem atendidas e vacinadas. Sem o SUS, certamente não teríamos conseguido superar tantos desafios daquele momento extremamente difícil em todos os aspectos da vida humana.
Naturalmente que celebrar avanços e feitos não significa ignorar os desafios de um sistema que, dadas sua complexidade e abrangência, exige atenção permanente e não se desenvolve no dia a dia sem percalços. Os pilares são sólidos, mas se trata de um serviço em permanente construção.
O financiamento do SUS, por exemplo, vem exigindo cada vez mais cuidados. O sistema sempre sofreu com sub-financiamento. Enquanto o gasto público com saúde fica abaixo dos 4% do PIB (Produto Interno Bruto) no Brasil, países como o Reino Unido ou Canadá destinam de 7 a 9%. São dois países desenvolvidos, ricos e com população muito menor (1/3 e 1/7 da nossa, respectivamente).
Além disso e apesar de a União ser a principal fonte dos recursos, nos últimos anos os municípios absorveram grande parte dos custos, pressionando um caixa bem mais limitado e causando ainda mais desigualdades regionais, haja vista a reduzida capacidade de prefeituras menores.
Reduzir as desigualdades regionais é, por sinal, outro dos grandes desafios do SUS. Neste capítulo, o Paraná e, especialmente, Curitiba são grandes diferenciais. Desenvolvemos aqui um SUS que serve, reconhecidamente, de exemplo para todo o Brasil. Não há nenhum exagero em dizer que temos a melhor saúde pública do país.
Tive o privilégio de ter desenvolvido praticamente toda minha trajetória na saúde sob a égide do SUS. Já exercia funções de gestora no período em que o sistema dava seus primeiros passos.
A palavra privilégio se aplica aqui por definir um posto de observação e de interação em que pude ver na prática como a estrutura do SUS pode trazer resultados práticos para a população, desde que tenha gestores atentos e dedicados.
Tivemos essa conjugação de fatores na maior parte do tempo no Paraná e em Curitiba. Por exemplo, a capital foi, em 2019, a primeira a zerar a transmissão de aids entre gestante e bebê. Criado em Curitiba, o programa Mãe Curitibana se expandiu para todo o estado, disseminando a saúde materno-infantil. O Saúde Já (Curitiba, 2019) foi pioneiro na telessaúde no Brasil. Nossas campanhas de vacinação são as mais eficazes, e o programa de transplante de órgãos é o mais eficiente do país. O trabalho durante a pandemia resultou numa das menores taxas de mortalidade pela covid-19.
Há vários outros exemplos.
São resultados atestados por organismos como Organização Mundial de Saúde (OMS) e Ministério da Saúde, entre outros, que avaliam com rigor as políticas públicas desenvolvidas.
O Paraná é, portanto, uma referência daquilo que pode ser feito para reduzir as diferenças regionais do SUS no resto do país. O sistema nacional, entretanto, tem outras grandes questões a serem enfrentadas sem demora.
Um dos casos mais emblemáticos: a população está vivendo mais, com mudança na pirâmide etária da população e aumento significativo no número de pessoas idosas (que vai se acentuar ainda mais nos próximos anos). Os anos a mais são uma ótima notícia que implica, no entanto, uma série de novas demandas – mais consultas, internamentos e medicamentos, já que aumenta também a incidência de doenças crônicas que surgem com o avanço da idade.
Por isso, a promoção do envelhecimento saudável se torna imprescindível, a fim de reduzir e amenizar problemas de saúde e garantir bem-estar ao longo de toda a vida.
Outro tema atual de destaque hoje é a incorporação de novas tecnologias ao sistema. Não só a tecnologia que viabiliza novos medicamentos (muitos deles, caros, já que fruto de custosas pesquisas), mas também a tecnologia aplicada ao atendimento (como a telessaúde e o uso da inteligência artificial).
O cardápio de temas relevantes é amplo e pede dedicação do poder público.
Nos seus 35 anos de vigência, o SUS se firmou como um patrimônio do Brasil, respondendo de forma muito consistente ao desafio colocado pela Constituição de 1988. Esse histórico merece ser celebrado – e torna ainda mais relevante o esforço que devemos fazer como país para melhorá-lo cada vez mais.
*Márcia Huçulak, ex-secretária de Saúde de Curitiba, mestre em Planejamento de Saúde pela Universidade de Londres e especialista em Saúde Pública pela Fiocruz, é deputada estadual pelo PSD-PR.