A PolĂcia Federal (PF) indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pelos crimes de peculato, associaĂ§Ă£o criminosa e lavagem de dinheiro pela venda ilegal de joias da PresidĂªncia da RepĂºblica, que foi revelado a partir de reportagens feitas pelo EstadĂ£o. Caso seja condenado pelos trĂªs crimes, o ex-chefe do Executivo pode pegar de 10 a 32 anos de prisĂ£o, conforme a legislaĂ§Ă£o vigente no PaĂs.
A investigaĂ§Ă£o iniciou apĂ³s uma sĂ©rie de reportagens do EstadĂ£o, publicadas em março do ano passado, revelarem que aliados do ex-presidente tentaram trazer ilegalmente para o PaĂs kits de joias dadas de presente pela ditadura da ArĂ¡bia Saudita. O inquĂ©rito, posteriormente, descobriu que um grupo de pessoas prĂ³ximas de Bolsonaro vendeu peças no exterior para fim de enriquecimento ilĂcito.
AlĂ©m de Bolsonaro, foram indiciadas outras 11 pessoas. Entre os nomes apontados pela PF estĂ£o o do tenente-coronel Mauro CĂ©sar Barbosa Cid, considerado o braço-direito do ex-presidente durante o mandato dele na PresidĂªncia, e dois ex-ministros: Fabio Wajngarten, que comandava a Secretaria de ComunicaĂ§Ă£o Social (Secom) e Bento Albuquerque, ex-chefe do MinistĂ©rio de Minas e Energia.
O advogado Frederick Wassef, tambĂ©m um dos indiciados, diz que nĂ£o recebeu ordens para comprar Rolex. Em sua conta no X (antigo Twitter), Fabio Wajngarten, tambĂ©m advogado e assessor, afirmou que nĂ£o violou a lei, e que seu indiciamento Ă© abusivo. “O meu indiciamento pela PolĂcia Federal se baseia na seguinte afronta legal: advogado, fui indiciado porque no exercĂcio de minhas prerrogativas, defendi um cliente, sendo que em toda a investigaĂ§Ă£o nĂ£o hĂ¡ qualquer prova contra mim. Sendo especĂfico: fui indiciado pela razĂ£o bizarra de ter cumprido a Lei!”, escreveu.
O EstadĂ£o tenta contato com a defesa dos demais indiciados.
Lavagem de dinheiro
De acordo com a lei nº 9.613/98, o crime de lavagem de dinheiro consiste em alguĂ©m tentar ocultar ou dissimular a “natureza, origem, localizaĂ§Ă£o, disposiĂ§Ă£o, movimentaĂ§Ă£o ou propriedade” de bens materiais.
Na prĂ¡tica, o crime ocorre quando o “dinheiro sujo”, utilizado ou derivado de prĂ¡ticas ilĂcitas, Ă© transformado em “dinheiro limpo” que aparenta nĂ£o ter origem irregular.
A legislaĂ§Ă£o determina que a pena para o crime de lavagem de dinheiro varia de trĂªs a atĂ© 10 anos de prisĂ£o. HĂ¡ ainda a previsĂ£o de pagamento de multa.
Peculato
O crime de peculato, previsto no artigo 312 do CĂ³digo Penal, se dĂ¡ quando um funcionĂ¡rio pĂºblico utiliza o cargo para se apropriar ou desviar determinado bem em detrimento prĂ³prio, ou para terceiros.
“Apropriar-se o funcionĂ¡rio pĂºblico de dinheiro, valor ou qualquer outro bem mĂ³vel, pĂºblico ou particular, de que tem a posse em razĂ£o do cargo, ou desviĂ¡-lo, em proveito prĂ³prio ou alheio”, diz a lei. A pena para o crime varia entre dois e 12 anos de reclusĂ£o.
AssociaĂ§Ă£o criminosa
O crime de associaĂ§Ă£o criminosa, previsto no artigo 288-A do CĂ³digo Penal, Ă© o que possui a pena mais rĂgida. O delito ocorre quando trĂªs ou mais pessoas se reĂºnem com a finalidade que cometer um ou alguns atos ilĂcitos.
Quem Ă© condenado por este crime pode pegar entre cinco e dez anos de reclusĂ£o. A lei brasileira tambĂ©m prevĂª pagamento de multa.
Pena de Bolsonaro pode ser agravada
A legislaĂ§Ă£o penal estabelece que as condenações devem ser feitas a partir da pena mĂnima dos crimes que estĂ£o sendo julgados. Os adicionais acontecem a partir de critĂ©rios fĂ¡ticos que podem agravar a situaĂ§Ă£o jurĂdica do ex-presidente.
De acordo com Luciano Anderson de Souza, professor de Direito Penal da Universidade de SĂ£o Paulo (USP), o fato de Bolsonaro ser rĂ©u primĂ¡rio deve beneficiĂ¡-lo em caso de condenaĂ§Ă£o, com uma pena mais branda. PorĂ©m, a condiĂ§Ă£o de ex-presidente Ă© um fator desfavorĂ¡vel que pode ser levado a jĂºri.
“O fato da pessoa praticar um crime na condiĂ§Ă£o de presidente da RepĂºblica ou qualquer outro cargo de destaque na administraĂ§Ă£o Ă© uma consideraĂ§Ă£o que hĂ¡ de ser feita desfavoravelmente. NĂ³s temos, inclusive, previsĂ£o de agravamento de pena por conta da pessoa ocupar uma posiĂ§Ă£o em que se prevaleça do abuso de poder ou violaĂ§Ă£o inerente ao cargo, ofĂcio, ministĂ©rio ou profissĂ£o”, afirma Luciano.
De acordo com o especialista, a Justiça tambĂ©m pode cruzar a condenaĂ§Ă£o de Bolsonaro pelo caso das joias com informações provenientes de outras investigações em que Bolsonaro Ă© alvo. O ex-presidente Ă© peça central em outros oito inquĂ©ritos, entre eles o que apura uma tentativa de golpe de Estado apĂ³s as eleições de 2022.
“A Justiça pode eventualmente cruzar as investigações se houver alguma relaĂ§Ă£o. Vamos imaginar a hipĂ³tese de que o eventual peculato serviria para, supostamente, financiar uma tentativa de golpe ou alguma coisa do gĂªnero. Sem sombra de dĂºvidas, existe uma razĂ£o para cruzar essas informações e atĂ©, no caso, para corroborar a existĂªncia de uma associaĂ§Ă£o criminosa”, explica o especialista.
‘Ficha-suja’
Caso Bolsonaro seja condenado no caso das joias, ele ficarĂ¡ inelegĂvel por mais tempo do que o inicialmente definido nas ações que correram no TSE, porque esbarrarĂ¡ na Lei Complementar 64/1990, conhecida como Lei das Inelegibilidades. “Existindo decisĂ£o transitada em julgado de crimes como peculato, lavagem de dinheiro e associaĂ§Ă£o criminosa, o ex-presidente esbarra na Lei de Inelegibilidades. Especificamente, essas situações estĂ£o previstas no artigo 1º”, explica Rodrigo CĂ¢ndido Nunes, advogado especialista em direito eleitoral com atuaĂ§Ă£o no Distrito Federal.
De acordo com a lei, a regra vale para os que “forem condenados, em decisĂ£o transitada em julgado ou proferida por Ă³rgĂ£o judicial colegiado, desde a condenaĂ§Ă£o atĂ© o transcurso do prazo de oito anos apĂ³s o cumprimento da pena”.
Nesse caso, como o trĂ¢mite de uma aĂ§Ă£o nĂ£o Ă© cĂ©lere – hĂ¡ recursos, por exemplo – Bolsonaro pode ser proibido de disputar as eleições presidenciais de 2030. “Neste caso, embora as inelegibilidades nĂ£o sejam cumulativas, o ex-presidente fica inelegĂvel ultrapassando o perĂodo de oito anos contados das suas duas condenações que acarretaram sua inelegibilidade”, afirmou Nunes.
Etapas judiciais
O relatĂ³rio final da PF sobre o caso das joias estĂ¡ sendo entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF). O rito estabelece que o relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, deve encaminhar o documento para o MinistĂ©rio PĂºblico Federal.
Cabe Ă Procuradoria-Geral da RepĂºblica (PGR) se manifestar, em atĂ© 15 dias, sobre um eventual oferecimento de denĂºncia contra os investigados. O MPF Ă© quem vai decidir se apresenta acusaĂ§Ă£o formal Ă Justiça, que pode determinar a abertura de uma aĂ§Ă£o penal. O MinistĂ©rio PĂºblico pode tambĂ©m pedir mais apurações, ou ainda arquivar o caso.
Desta forma, o indiciamento da PF nĂ£o significa que o ex-presidente Ă© culpado pela apropriaĂ§Ă£o e tentativa de venda das joias. Apenas se a Justiça acatar a denĂºncia, Bolsonaro vira rĂ©u no processo que vai julgar os crimes. Nesta fase, serĂ£o ouvidas testemunhas de acusaĂ§Ă£o e de defesa, a posiĂ§Ă£o do MP e dos acusados e, sĂ³ entĂ£o, haverĂ¡ o julgamento do caso.