“SĂ£o as eleições mais importantes dos Ăºltimos 20 anos”, disse o ex-premiĂª socialista JosĂ© Luis RodrĂguez Zapatero. Para Yolanda DĂaz, lĂder da coalizĂ£o de esquerda Sumar, “os prĂ³ximos dez anos estĂ£o em jogo”. Esse tipo de grandiloquĂªncia contagiou os espanhĂ³is, que transformaram as eleições de hoje no assunto mais comentado em mesas de bar e grupos de WhatsApp. ApĂ³s cinco anos de governo progressista, os conservadores estĂ£o a um passo de voltar ao poder com a ajuda da extrema direta.
A Espanha moderna ainda arrasta alguns traumas do sĂ©culo 20. Foram 40 anos da ditadura fascista de Francisco Franco, apĂ³s uma sangrenta guerra civil que levou ao exĂlio 2 milhões de pessoas. O paĂs Ă© a segunda naĂ§Ă£o do mundo – depois do Camboja – com mais cadĂ¡veres em valas comuns nĂ£o identificadas. Por isso, o retorno da direita radical e nacionalista ao governo assombra a outra metade dos espanhĂ³is.
O cenĂ¡rio atual começou a ser desenhado em maio, quando o conservador Partido Popular (PP) deu uma surra no Partido Socialista (PSOE) nas eleições locais. Diante do desastre, o primeiro-ministro, Pedro SĂ¡nchez, decidiu antecipar as eleições. A votaĂ§Ă£o, que seria em dezembro, foi marcada para julho, no auge das fĂ©rias de verĂ£o e em meio a uma onda de calor que envolve a Europa. O resultado: um recorde de 2 milhões de votos por correio.
Pesquisas apontam uma vitĂ³ria do PP, liderado por Alberto NĂºĂ±ez FeijĂ³o, com 34% das intenções de voto, seguido por SĂ¡nchez com 29%. Em terceiro lugar, um empate entre os ultradireitistas do Vox e os esquerdistas do Sumar (que abraçaram o Podemos e outros partidos regionais progressistas) com 14%. Separatistas bascos, catalĂ£es, galegos e outros partidos locais compõem o resto das preferĂªncias.
Sistema
Para ser o novo inquilino do PalĂ¡cio da Moncloa Ă© preciso apoio de 176 dos 350 deputados no Congresso. “Em comparaĂ§Ă£o com os paĂses vizinhos, como a França, a Espanha Ă© politicamente mais calma. A tensĂ£o que se percebe na vida pĂºblica e na mĂdia mostra o divĂ³rcio entre povo e classe polĂtica”, disse ao EstadĂ£o JosĂ© Juan Toharia, presidente da Metroscopia, um dos mais importantes institutos de pesquisas da Espanha. “Cerca de 80% dos espanhĂ³is dizem ter saudades dos tempos em que havia acordos transversais, algo que foi rompido hĂ¡ 15 anos.”
Para Toharia, embora os espanhĂ³is se identifiquem com o sistema democrĂ¡tico – acima de 75% -, eles acreditam que os polĂticos fazem “mais parte do problema do que da soluĂ§Ă£o”. “O divĂ³rcio entre polĂtica e sociedade Ă© amplificado pela mĂdia, altamente concentrada em nichos ideolĂ³gicos”, disse.
ApĂ³s a crise econĂ´mica de 2008, surgiram vĂ¡rios partidos polĂticos candidatos a surrupiar votos dos conservadores do PP e dos progressistas do PSOE. O Podemos, de esquerda, os separatistas catalĂ£es, o Ciudadanos, moderado, subiram e desceram a gangorra das urnas, oscilando entre o cĂ©u e a irrelevĂ¢ncia.
“Agora, um partido populista radical de direita estĂ¡ surgindo com força e sua presença Ă© cada vez mais marcante, porque a extrema esquerda perdeu força. O Vox tem tons agressivos e faz propostas combativas”, afirma Toharia. “Passamos do bipartidarismo ao ‘bibloquismo’: dois blocos que traçaram uma linha que nĂ£o pode ser cruzada, sem diĂ¡logo transversal. Hoje, a radiografia Ă© que a Espanha estĂ¡ dividida.”
Direita, volver
O analista Alejandro SolĂs garante que serĂ¡ quase impossĂvel para PP e Vox somarem menos de 170 cadeiras nas eleições de hoje. A mobilizaĂ§Ă£o das bases progressistas pode mudar a tendĂªncia, mas nĂ£o drasticamente. “Direita e extrema direita tĂªm 60% de chances de obter maioria”, calcula SolĂs.
A provĂ¡vel volta do PP ao poder Ă© resultado dos atropelos do governo socialista. A direita acusa SĂ¡nchez de se aliar a separatistas bascos e catalĂ£es para aprovar leis progressistas. JĂ¡ o governo culpa os conservadores pela inaĂ§Ă£o – as indicações para JudiciĂ¡rio, por exemplo, estĂ£o estagnadas hĂ¡ cinco anos.
Extremos
Mas o PP, que poderia ser beneficiar do desaparecimento de outros partidos de centro-direita, como o Ciudadanos, agora se vĂª levado ao extremo pelo Vox, em uma aliança pouco comum na Europa. Ao contrĂ¡rio da Alemanha ou da França, na Espanha nunca houve uma recusa dos conservadores em governar com a ajuda dos radicais.
A provĂ¡vel coalizĂ£o vem ligando o sinal de alerta em muitos eleitores da direita moderada. Conservadores e extrema direita, que jĂ¡ ocupam governos locais, vĂªm promovendo leis e acordos que incluem a proibiĂ§Ă£o de bandeiras LGBT+ em prĂ©dios pĂºblicos, alĂ©m da negaĂ§Ă£o da violĂªncia de gĂªnero e das mudanças climĂ¡ticas.
O lĂder do Vox, Santiago Abascal, antes da pandemia, festejava sua sintonia ideolĂ³gica com Jair Bolsonaro, embora depois tenha passado a escondĂª-la. Ele tambĂ©m Ă© fĂ£ de carteirinha do ex-presidente americano Donald Trump.
Ciente do poder que tem, Abascal radicalizou o discurso, deixou vazar que exigiria ministĂ©rios como Cultura ou EducaĂ§Ă£o, alĂ©m de exigir o fim da autonomia da Catalunha. Sua retĂ³rica incendiĂ¡ria parece seguir uma cartilha oposta a de qualquer polĂtico tradicional Ă s vĂ©speras da eleiĂ§Ă£o.
ModeraĂ§Ă£o
“O Vox nĂ£o modera o discurso porque seu pĂºblico-alvo nĂ£o sĂ³ o apoia como tambĂ©m parece encorajar a radicalizaĂ§Ă£o”, disse David LerĂn Ibarra, professor da Universidade Complutense, cuja tese de doutorado foi uma radiografia do fenĂ´meno Vox na Espanha. Segundo ele, o que Abascal diz “Ă© produto de um estudo de mercado”. “Ele sabe que 15% da populaĂ§Ă£o compra esse discurso, buscando assim consolidar o voto radical”, disse Ibarra.
Questionado sobre as diferenças entre Vox, bolsonarismo e trumpismo, Ibarra responde que “o partido espanhol tem apoio do ultranacionalismo catĂ³lico, enquanto Trump e Bolsonaro tĂªm mais força entre os evangĂ©licos”. “Os trĂªs, no entanto, tĂªm muitas pautas em comum, como prometer recuperar supostas glĂ³rias do passado.”
Com relaĂ§Ă£o ao novo governo, Ibarra prevĂª que a extrema direita deve forçar os conservadores a aceitarem uma coalizĂ£o. “Se o Vox apoiar FeijĂ³o, mas nĂ£o entrar no Executivo, ele pode aproveitar para disparar crĂticas constantes, questionar o PP e chamĂ¡-lo de ‘direita covarde’.”
Economia
A eleiĂ§Ă£o de hoje na Espanha serĂ¡ acompanhada de perto por vĂ¡rios paĂses da UniĂ£o Europeia, ansiosos para ver se os espanhĂ³is repetem na quarta maior economia do bloco os mesmos passos da ItĂ¡lia, que Ă© governada por uma aliança conservadora, que inclui a extrema direita antieuropeia.
Se de fato SĂ¡nchez estiver com os seus dias contados, como parece, o premiĂª socialista serĂ¡ protagonista de um paradoxo raro: o governo com a economia que mais cresce na zona do euro e com a inflaĂ§Ă£o mais baixa serĂ¡ apeado do poder.
As informações sĂ£o do jornal O Estado de S. Paulo.