IMG-20240311-WA0051
Kerolyn Milani: necromaquiagem (Marcelo Andrade/Luto Curitiba)

A primeira vez que Kerolyn Milani falou para a família sobre a carreira que queria seguir, ouviu declarações de estranhamento e repulsa. Ela tinha 17 anos e estava terminando o Ensino Médio quando decidiu se tornar agente funerária. Hoje, Kerolyn é especializada em maquiar cadáveres.

“Na época foi um choque, ninguém acreditou. Achavam que eu já iria desistir, que era só uma fase de adolescente”, conta Kerolyn, agora com 21 anos.

Foi durante o curso de auxiliar de necropsia, onde aprendeu sobre tanatopraxia (técnica para conservar o cadáver), papiloscopia (processo de identificação humana por meio das impressões digitais), perícia criminal, medicina legal e tanatologia (estudo científico da morte), que Kerolyn se apaixonou pela maquiagem mortuária.

“Como é um tabu, não chegou a ser um sonho meu de criança ser necromaquiadora. Até eu entrar no meu curso nem sabia que existia essa profissão, porque é uma coisa que não se fala muito.”

IMG-20240311-WA0050
Kerolyn Milani: importância da necromaquiagem está na preservação da memória da pessoa falecida (Marcelo Andrade/Luto Curitiba)

Necromaquiagem

A necromaquiagem é uma técnica utilizada para preparar o cadáver através do uso de produtos cosméticos. Ela é o procedimento final da tanatopraxia e tudo é feito com o objetivo de preservar a aparência da pessoa que morreu.

Kerolyn, que já maquiou de 30 a 50 corpos, explica que muitas técnicas e produtos da maquiagem profissional convencional, como base, rímel, blush e sombra, podem ser utilizadas em cadáveres, mas existem diferenças entre maquiar uma pessoa viva e uma morta. “A pele do morto é fria, desidratada, não vai absorver tanto produto quanto uma pele viva”, exemplifica.

Apesar de cada caso ser único, há algumas estratégias habituais na maquiagem pós-morte: não usar excessivamente produtos em pó em razão da desidratação da pele, não aplicar bases com subtons rosados pois a pele pode acinzentar, utilizar bastante pó no nariz porque às vezes o processo de tamponamento (disposição de algodões nas cavidades para que secreções e sangue não sejam liberados) pode deixar marcas, passar manteiga de cacau nos lábios para não deixar ressecá-los, evitar o contorno, técnica de maquiagem para definir e realçar a estrutura do rosto (com a pessoa deitada, cria-se uma sombra e, com o contorno, pode dar a sensação de necrose e putrefação).

Segundo a profissional, o foco da necromaquiagem é corrigir qualquer imperfeição da pele humana relacionada à morte e não apenas no rosto. Mãos e pescoço também passam pelo procedimento estético. “Se for uma morte hepática [deterioração da função do fígado], por exemplo, a pessoa fica mais amarelada. Alguma vermelhidão, sangue coagulado, roxos, marcas do acesso, caso a pessoa tenha sido hospitalizada, tudo isso corrigimos com a necromaquiagem”, explica.

No geral, os agentes funerários solicitam uma foto da pessoa falecida como referência e sempre orientam aos familiares sobre a roupa: gola alta e manga comprida. Kerolyn também arruma os cabelos e passa esmalte nas unhas, caso seja desejo da família. “É mais difícil pessoas que queiram uma maquiagem mais elaborada, com cílios postiços, por exemplo. Acontece e fazemos quando é pedido.”

Um dos piores cenários, na avaliação de Kerolyn, é não conseguir entregar um caixão aberto, o que muitas vezes ocorre devido à causa do óbito da pessoa, como em casos de acidentes e mortes violentas. “É triste porque você quer entregar uma despedida, mas às vezes não tem como, nem realizando a reconstrução facial. É uma questão cultural nossa também essa coisa de ver o corpo para se despedir.”

Para a profissional, a importância da necromaquiagem está na preservação da memória, identidade, características e traços da pessoa falecida para os familiares e amigos. “Os familiares nem precisam saber que tinha uma mancha ou um ferimento na pele. O maior elogio para um necromaquiador é escutar alguém dizendo que ‘parecia que a pessoa estava dormindo’”, afirma.

Trabalho de cuidado

Embora seja especializada em necromaquiagem, quando está de plantão Kerolyn desempenha todas as funções de uma agente funerária: desde o atendimento à família até o transporte do corpo ao velório.

O trabalho começa quando uma pessoa notifica um falecimento. Kerolyn, então, precisa retirar o corpo, seja de um hospital ou de uma residência, e levá-lo à funerária. Depois ele é preparado. Na sala úmida ocorre a higienização do cadáver e a troca dos fluidos corporais por fluidos químicos com ação conservante com o intuito de desacelerar o processo natural da decomposição. Já na sala seca é onde são colocadas as roupas, feita a maquiagem e a ornamentação do caixão. Por fim, o corpo é levado até o velório e entregue aos cemitérios para o sepultamento ou cremação.


Além de todo esse procedimento, os agentes funerários também se relacionam diretamente com o luto. “Os familiares nem sabem às vezes o que estão sentindo, mas nós aqui do outro lado entendemos o que está acontecendo porque lidamos com isso todos os dias. O ser humano não pensa na morte e na finitude, então é um choque muito grande sempre. As famílias precisam chorar, precisam viver o luto para entender e assimilar a perda”, diz.

De acordo com Kerolyn, a pandemia de Covid-19 mudou completamente a cultura funerária do Brasil. Se antes os velórios duravam dias, agora tudo precisa ser feito dentro de algumas horas. “A gente que trabalha na área está sentindo bastante essa cultura pós-pandemia de o pessoal querer fazer tudo muito rápido. É um reflexo da época em que tinha que se enterrar às pressas por questões de saúde.”

Nessa correria e com tanta burocracia para ser resolvida após a morte de alguém, as pessoas podem deixar escapar detalhes. “Nós [agentes funerários] estamos aqui para explicar e orientar sobre o que elas precisam fazer, como, o que tem que comprar, onde, quanto. De certa forma é uma maneira de cuidar dos vivos também”, afirma.

Atualmente, além de transformar a visão da própria família a respeito da profissão de agente funerária e da morte, Kerolyn também influencia outras pessoas que entram em contato com ela e a acompanham por meio do Instagram, rede na qual tira dúvidas e divulga conteúdos sobre necromaquiagem.
“Meus parentes olham para mim e falam ‘você que vai me fazer quando morrer, eu quero desse jeito’”, Kerolyn conta rindo e finaliza: “Todo mundo vai morrer. Precisa existir quem faça a profissão, quem cuide do depois. E eu estou aqui para ficar.”