A disputa envolvendo uma das maiores áreas verdes preservadas de Curitiba parece estar chegando ao fim. No terreno do imóvel onde funcionou por 65 anos o Hospital Psiquiátrico Bom Retiro deve ter início em breve a construção de um hipermercado da Rede Angeloni, que confirmou ao Bem Paraná ter aprovado seu projeto junto ao município e estar efetuando as preparações iniciais do terreno – embora ainda não tenha um cronograma de obras.
Confirmada em agosto de 2017, a construção do mercado causou barulho quando de seu anúncio, com moradores da região e ativistas ambientais se mobilizando contra a obra com a criação do movimento “A Causa Mais Bonita da Cidade“, que coletou mais de 11 mil assinaturas e incentivou a realização de passeatas e atos simbólicos em frente à área vendida ao conglomerado catarinense (que possui 17 mil metros quadrados do antigo terreno do hospital, que somava cerca de 60 mil m²). A intenção desse grupo é criar um parque municipal no local, o Parque do Bom Retiro, para preservar integralmente o bosque que existe ali, três nascentes de água pura e dois pequenos córregos.
Depois do embate inicial, por algum tempo as coisas ficaram quietas, quase que esquecidas. Até que recentemente começou uma nova movimentação no local, com toda a área pertencente ao Angeloni sendo cercada por tapumes metálicos, num prenúncio do iminente início das escavações para a construção de um novo hipermercado.
Vai ser o segundo gigante de concreto num raio de menos de um quilômetro, já que próximo dali, na própria Rua Nilo Peçanha, há um Hiper Condor. Além disso, nas proximidades ainda há duas unidades do Festval (no próprio Bom Retiro e no São Lourenço), um Condor Gourmet (na Av. Anita Garibaldi) e um Super Condor Pilarzinho (na R. Amauri Lange Silvério), sem contar os tradicionais ‘mercadinhos de bairro’.
De acordo com o Angeloni, o processo de licenciamento para a construção da loja já incluiu todos os estudos ambientais necessários para concessão de licença. Além disso, a rede também informou, por meio de nota, que, “na parte sul do terreno maior, aproximadamente 4 mil m² são compostos por bosques nativos. Esta área será integralmente preservada e mantida pela empresa, honrando compromisso assumido junto aos órgãos ambientais”. A rede ainda, destacou que “o Projeto de Revitalização de Bosque Nativo Relevante tem como fundamental objetivo a recuperação ecológica e o enriquecimento florestal com plantas de espécies nativas”.
Os moradores da região e ativistas ambientais de Curitiba, no entanto, já se movimentam para, mais uma vez, fazer frente à obra e tentar reverter a situação. No próximo domingo (9 de outubro), por exemplo, promoverão uma feira de troca de brinquedos, livros infantis e figurinhas da Copa do Mundo na calçada do local, além de uma feira de desapegos e oficina para montagem de minifoguetes com as crianças. O encontro acontece das 10h30 às 16h30, na Rua Nilo Peçanha, 1552.
Segundo o pedagogo Luca Rischbieter, o encontro possivelmente será um adeus a um verdadeiro marco histórico não só do bairro, mas do município como um todo. “É uma despedida, um protesto contra o absurdo que estão fazendo na cidade, que é nossa, não deles.”
Ao mesmo tempo, contudo, a luta continua, com tentativas de diálogo junto à Prefeitura de Curitiba e ao Angeloni. Além do projeto original, de criar um parque público no local, também surgiu nos últimos anos a sugestão de se criar no local um parque que trouxesse uma espécie de centro de atividades no seu interior, com atuação voltada para a saúde mental. Tratar-se-ia, basicamente, de um ambiente de cura, alinhado com a proposta e o uso original daquela área.
“Nossa proposta é fazer barulho para tentar movimentar a sociedade, tentar salvar o que resta [do hospital psiquiátrico e da vegetação nativa]. Não precisamos dessa obra. Queremos viver num bairro familiar, não num local cheio de trânsito, barulho e locais gigantes”, protesta Líbia Patricia Peralta Agudelo, moradora do bairro e coordenadora do EcoStudio, um coletivo que reúne arquitetos, engenheiros civis e ambientais e designers que fazem consultoria para empreendimentos verdes.
História
O edifício original do Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro, que deu nome ao bairro, foi demolido 67 anos após sua construção, em dezembro de 2012. Na ocasião, até mesmo os restos mortais do benfeitor Lins de Vasconcellos, que antes de falecer pediu para ser enterrado no local, foram retirados e transladados para um espaço em Balsa Nova, na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), para que a Federação Espírita do Paraná, responsável pela demolição do prédio, entregasse o terreno limpo.
Inicialmente, chegou-se a falar na construção de mais um shopping convencional no local. Depois ainda surgiram especulações sobre a construção de um centro comercial e um edifício residencial, até que em agosto de 2017 foi anunciada a construção de uma nova unidade da Rede Angeloni, que é proprietária de aproximadamente um terço do terreno original do hospital psiquiátrico, que soma 60 mil m².
Há mais de uma década, contudo, há uma luta por parte da sociedade para conseguir a preservação daquela área. O alvará de demolição do prédio do Hospital Bom Retiro, por exemplo, chegou a ser cancelado pelo município em 2012, meses antes de sua demolição, para que se avaliasse se se tratava de uma Unidade de Interesse de Preservação (UIP). Isso, contudo, acabou não acontecendo, ainda que o hospital psiquiátrico que ali ficava tenha sido o primeiro da cidade, marcando toda a história e desenvolvimento do bairro Bom Retiro (tanto que foi o hospital que acabou emprestando o nome que a localidade hoje carrega, como já citado), se tornando também um marco da história manicomial brasileira – além de concentrar uma grande área de vegetação nativa, preservada.
“Tudo isso é muito estranho. O papel da Prefeitura não é servir a um supermercado, mas ao interesse comum. Mais de 11 mil assinaturas e simplesmente ignoram isso. O prefeito de Curitiba, se quisesse, poderia fazer o Parque do Bom Retiro em uma semana, mas ele não quis. Escolheu fazer o binário [da Rua Niço Peçanha e da Mateus Leme] e servir a um hipermercado em detrimento de um legado cultural e natural importante da região, um dos últimos daquele local. Isso tudo é muito decepcionante”, desabafa Luca Rischbieter.
Líbia Patricia Peralta Agudelo, por sua vez, destaca que o terreno, que foi doado décadas atrás para que virasse um hospital psiquiátrico, tinha um objetivo de serviço público, atendimento social. “Como é possível, então, deturpar tudo isso para fazer um empreendimento que não é necessário? Não precisamos nem queremos esse hipermercado. Como assim, mais um?! Aqui tem mais supermercado por metro quadrado do que em qualquer lugar da cidade”, reclama ela, argumentando que um terreno doado com finalidade social numa área estratégica da cidade deveria virar um parque, ser devolvido à população. Ainda pela importância ecológica daquele espaço.
Os possíveis impactos ambientais do novo empreendimento
Integrante do EcoStudio, Líbia é designer e também professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Ao lado do marido, Eloy Casagrande Junior, que também é designer e professor da UTFPR, e de diversos outros moradores, profissionais liberais, professores, artistas e políticos, foram realizadas várias investigações sobre a história e a documentação do terreno, além de analisado os possíveis impactos ambientais que uma obra de tal porte pode gerar numa área de preservação. Foi durante essas investigações, inclusive, que descobriram haver no local três nascentes de água pura e dois pequenos córregos, junto dos quase 30 mil m² de mata nativa preservada. Uma riqueza que fica ameaçada com a construção do hipermercado.
“Digamos que você tem uma fazenda e eu sou sua vizinha do lado. Você quer preservar toda mata nativa que tem e há uma cerca no meio, separando os terrenos. Mas eu não quero preservar, eu quero é cavar, colocar um hotel no lugar, algo assim. Em um ano a tua floresta estará morta, porque você modifica o ciclo hídrico, a polinização, os efeitos dos ventos naquele local. É o que chamamos de efeito de borda, que gera uma área que vai se degradando ao longo do tempo. Temos medo do impacto do estacionamento, do trânsito no local. A mata vai morrer, vai se degradar. Vai se degradar demasiadamente”, aponta Libia.
Outra questão é que aquela região apresenta um solo mais rochoso. Não à toa, nas proximidades dali há espaços que um dia já foram pedreiras para extração de granito, como a Pedreira Paulo Leminski e o Parque Tanguá. E nos locais com esse tipo de solo, o contato com o lençol freático costuma ser mais superficial, o que também aumenta o risco de contaminações. “Se tem nascentes ali que vão para o Rio Belém, qualquer movimentação no terreno vai afetar e no bairro já temos problemas seríssimos de alagamento”, diz ela, ressaltando, ainda, que o Parque do Bom Retiro representa um ícone para a comunidade. Um ícone que está sendo assassinado. “Não entendo como uma Prefeitura, um Ippuc não vê isso. Apagaram a história da cidade para colocar a pior coisa possível no local, que é um hipermercado”.
Prefeitura autorizou obra no final de julho
Procurada pelo Bem Paraná, a Prefeitura de Curitiba, através da Secretaria Municipal de Urbanismo, informou que o antigo terreno do Hospital Psiquiátrico Bom Retiro está atualmente dividido em dois lotes, ambos de propriedade particular. “Em um deles, foi autorizada a construção de Hipermercado através da emissão do alvará de construção. Tal alvará foi emitido em 25/07/2022, devendo ser mantida a área de bosque situada na parte dos fundos deste lote”, informou o município, por meio de nota.