




Em uma manhã quente de sábado, cerca de 300 pessoas se reuniram do lado de fora de um velho prédio amarelo localizado na Avenida Visconde de Guarapuava, no Centro de Curitiba. Todas aguardavam a abertura das portas do antigo necrotério da cidade quando a perita criminal e responsável pela visita guiada ao espaço, Fabíola Schutzenberger Machado, anunciou: “Agora vamos fazer o caminho dos cadáveres”.
O local de 2.500 metros quadrados, que recebeu os corpos de todos que morriam de forma violenta ou suspeita entre 1975 e 2018, abriga cerca de nove salas acessíveis aos visitantes. Durante 43 anos, mais de 125 mil cadáveres foram examinados na sede do então Instituto Médico Legal (IML), hoje Polícia Científica do Paraná (PCP). Agora, o espaço é aberto mensalmente a todos que desejarem conhecê-lo.
Dentro do prédio de paredes verdes e beges, apertado para um grupo tão grande de pessoas, Machado explicou com detalhes o percurso feito pelos cadáveres. Quando um corpo dava entrada no necrotério, o primeiro passo era o exame de necropsia, procedimento médico utilizado para determinar a causa da morte e, muitas vezes, a identidade da pessoa.
Os três principais métodos para descobrir a identidade do cadáver são a papiloscopia (identificação pela digital), a odontologia legal (comparação pela arcada dentária) e o exame de DNA (utilizado em último caso por ter um custo elevado e um tempo de dois a três meses para obter-se o resultado).
Caso o corpo já estivesse decomposto, a ossada era encaminhada diretamente à seção de antropologia, responsável pela estimativa do perfil biológico da vítima. “O primeiro osso que analisamos não é o crânio, ao contrário do que muitos pensam. É o ílio, um dos formadores da pelve, que é o que mais dá característica de idade, sexo e estatura”, afirma a cirurgiã-dentista e residente técnica em Ciências Forenses da PCP, Suzi Rososki.
Além dos exames antropológicos, a causa da morte pode ser identificada a partir da coleta de material do corpo (pedaços de ossos ou tecidos, por exemplo) e envio a laboratórios para uma investigação complementar. “Isso tudo faz parte do exame pericial. Ele não é rápido e nem pode ser, porque uma vez liberado o corpo pela Polícia Científica, essa prova, esse vestígio está perdido”, destaca Fabíola Machado.
Local já serviu de locação para séries de TV e para o cinema
O grupo de visitantes seguiu pelos corredores até que parou em frente a uma porta entreaberta de metal, com o aviso “Colocar somente corpo putrefeito!” escrito em papel sulfite. Essa era a câmara fria utilizada para armazenar e conservar corpos que já haviam iniciado o processo de putrefação e aguardavam identificação, remoção para necropsia ou enterro. Esses cadáveres eram separados daqueles não putrefeitos devido ao cheiro e à fauna cadavérica, como moscas e larvas.
Os outros corpos, que ainda não estavam decompostos, eram encaminhados à outra câmara fria, uma sala maior, com mesas de necropsia e três fileiras de gavetas para armazená-los, como aquelas que aparecem em filmes. O necrotério da Visconde, inclusive, já foi set de filmagem de duas séries (“Insânia”, de 2021, e “As últimas férias”, de 2023) e um filme (“Entre linhas”, de 2016).
Nos anos de funcionamento do necrotério, os cadáveres permaneciam na câmara fria até que fossem reclamados por um familiar. Isso, no entanto, representava um problema ao antigo IML visto que, não podendo enterrar os corpos, o local ficava superlotado, chegando a acomodar 170 cadáveres empilhados em um espaço destinado a 60. “Não tinha mais onde guardar os corpos. Era desesperador”, relata Machado.
Hoje, com uma demanda média de seis a oito corpos para examinar por dia, a Polícia Científica pode manter os cadáveres nas câmaras frias por até 14 dias. Após esse período, caso não haja reclamação do corpo, a instituição faz o sepultamento. “Nesses casos nós fazemos o papel de família: vamos até o cartório, emitimos a certidão de óbito e enterramos”, diz Machado. Nos dias mais movimentados, a PCP chega a receber 18 cadáveres vindos de Curitiba e da Região Metropolitana.
A última sala do tour pelo necrotério é conhecida como capelinha. É um espaço pequeno, com uma cruz pendurada na parede e um vitral da Virgem Maria no topo de uma das paredes. A imagem da santa tem o olhar direcionado para a mesa onde eram colocados os corpos das vítimas a serem reconhecidos pelos familiares.
A primeira perícia feita em um cadáver no Paraná ocorreu em 1878, no local do crime, quando ainda nem havia necrotério no estado – o primeiro foi instalado dois anos depois no Hospital Santa Casa. Foi só em 1936 que o IML ganhou uma sede, no edifício que hoje hospeda a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). A segunda sede, conservada na Visconde de Guarapuava, era considerada na época uma das mais modernas e bem equipadas do Brasil.
Hoje, as únicas necropsias feitas no local são em animais vítimas de crimes como caça ilegal e maus tratos.
Natália de Freitas, de 26 anos, foi uma das 300 pessoas que percorreu o necrotério naquela visita. “Depois que eu morrer quero doar meu corpo para pesquisa para que um dia talvez eu possa ajudar alguém. Por isso achei interessante vir conhecer mais sobre essa área”, conta.
Este ano Natália começou um curso de auxiliar de necropsia e, segundo ela, soube que queria atuar com cadáveres quando presenciou um crime perto de sua casa, em São José dos Pinhais. “Uma criança levou um tiro na cabeça. Peguei um pano e fui segurá-la porque ainda estava viva. Foi aí que decidi: quero ajudar as pessoas, mas depois da morte, porque com as vivas eu não tenho estômago”, diz, rindo, ao mesmo tempo que afirma não conseguir ver os filhos recebendo injeção.
A perícia para além dos cadáveres
O caminho feito pelos mortos atualmente ainda é bem parecido com aquele dos anos 1970. A diferença é que agora há mais tecnologia e mais espaço, o que facilita o processo. Desde 2018, os cadáveres de Curitiba são periciados pela PCP na nova sede da instituição, que fica no bairro Tarumã e é três vezes maior que a anterior.
“A perícia dos cadáveres é só um pedaço do trabalho que a gente realiza. O corpo é só um dos vestígios da cena do crime”, pontua Fabíola Machado.
É por esse motivo que a PCP mantém na sede o Museu de Ciências Forenses, dedicado à conservação e divulgação da história do trabalho pericial no Paraná. O espaço, que possui em seu acervo instrumentos e equipamentos utilizados desde o início dessa atividade profissional no estado, livros, documentos, arquivos fotográficos e peças anatômicas, recebe em torno de 1.000 visitantes por mês.
O primeiro registro que se tem do museu, segundo Machado, que é diretora do espaço há dois anos, é de 1910. Naquele período, o antigo IML ainda não tinha uma sede e o local, criado como “Museu do Crime”, tinha como objetivo guardar objetos relacionados à criminalidade no estado.
“As pessoas às vezes têm uma ideia um pouco equivocada do que é perícia. Quando falamos em Polícia Científica ou IML todo mundo pensa logo em cadáver. Vindo aqui, a pessoa vai entender que o nosso trabalho é muito mais amplo do que isso. A gente usa a ciência na resolução de crimes.”
A maioria dos exames realizados pela PCP são em pessoas vivas (exames de lesão corporal em vítimas de violência doméstica ou abuso sexual, por exemplo), segundo Machado. Mas os peritos também analisam celulares, computadores, drogas, documentos e armas de fogo, para citar alguns.
Além de fetos, órgãos humanos, mãos e braços mumificados, crânios, projéteis de armas, polígrafos, retratos falados, maletas, gravadores e câmeras, o museu tem ao menos um destaque: o cadáver do assassino conhecido como Paraibinha, que viveu no Paraná na década de 1970. Ele foi morto com uma foice em Campo Largo e seu corpo foi mumificado pelo curador do espaço, José Joel Camargo, que utilizou álcool, formol e glicerina para impedir a proliferação dos microrganismos responsáveis pela degradação do corpo. Paraibinha é um dos três cadáveres de indigentes expostos.
Camargo foi auxiliar de necropsia por mais de 40 anos e atuou nas áreas de patologia e toxicologia antes de estabelecer-se no museu. Ele conta que utilizou durante décadas o caldeirão de ossadas para limpar os cadáveres putrefeitos, visando a soltura da carne dos ossos. “Já abri e cozinhei centenas de corpos, sempre com respeito, ética e transparência”.
“Hoje [o campo] está mais evoluído e moderno, mas quando eu comecei era arco de pua e serrote”, afirma.
Conhecedor íntimo de todas as peças exibidas no museu, Joel é quem guia os visitantes pelas histórias que marcaram a Polícia Científica do Paraná. Para todos os grupos que passam por ali, ele faz questão de lembrar: “Nosso trabalho vai ajudar a desvendar os crimes. Não existe crime perfeito. Ainda mais porque aqui os cadáveres falam com a gente e contam tudo.”
Serviço
Complexo Museu Paranaense de Ciências Forenses
Antigo necrotério
Endereço: Rua Visconde de Guarapuava, 2652 – Centro, Curitiba/PR
Visita: Aberta ao público na última quinta-feira do mês, às 19h. É uma visita guiada, que leva em torno de uma hora.
Agendamento: Como a procura é alta, é preciso fazer o agendamento prévio. Na segunda-feira anterior à visita, a Polícia Científica libera o formulário de inscrição pelo Instagram. São em torno de 80 a 100 vagas.
Museu na sede do Tarumã
Endereço: Rua Paulo Turkiewicz, 150 – Tarumã, Curitiba/PR
Visita: Aberta ao público na última segunda-feira do mês, das 9h às 16h.
Agendamento: Não é necessário agendamento prévio.
Visita técnica: Voltada somente para estudantes e profissionais da Saúde, de Direito e de Segurança Pública. Visita pelo museu e laboratórios da PCP. Neste caso é preciso realizar agendamento.
Para outras informações sobre o museu, basta entrar em contato com a PCP pelo e-mail [email protected].