
O barulho ao pisar no chão, o cheiro rústico, o espaço aconchegante. As casas de madeira, muito conhecidas pelo aspecto antigo, foram uma grande tendência no Paraná e guardam memórias de inúmeras famílias. Mas, além de contar histórias, elas também são símbolos do presente e do futuro de algo muito forte no estado: o setor florestal.
Em Santa Felicidade, bairro conhecido pela imigração italiana de Curitiba, as casas de madeira, por muito tempo, foram a maioria. E é lá que fica a Casa da Baba. Conhecida pelo aconchego e pelo amor de vó, a Casa da Baba passou por uma restauração recentemente. Quando foi construída, o material usado foram as araucárias.
Foi ali que Gheysa Pires, neta de Aglair Pires — conhecida como a Baba —, cresceu. A Baba chegou à casinha em 1953. Por questões de acessibilidade do bairro, hoje a casa pertence à neta e foi restaurada para se tornar um espaço de pequenos eventos. Mais do que uma construção, a casa é símbolo da força e união de uma família.


“Essa casa sempre foi fruto de muita luta da minha bisavó. Restaurar é manter viva essa história, é honrar todo o esforço que ela fez pela família. Tudo isso conta quem nós somos. E hoje as pessoas têm perdido isso. A gente não é só o presente: somos o resultado de muitas gerações”, diz Gheysa.
Madeira nas casas: uma história de anos no Paraná
Assim como a casinha em Santa Felicidade, muitas construções de madeira resgatam a história da cidade. Na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) está uma das casas mais queridas pelos especialistas do setor: a Casa Estrela.
Construída por volta da década de 1930, a casinha passou alguns anos no Alto da Glória, em Curitiba. Em 2010, o Departamento de Controle de Edificações da Prefeitura Municipal de Curitiba emitiu o alvará para obras de restauro da casa, que foi realocada no Bosque Marcelino Champagnat, da PUCPR.



Hoje, a construção sente algumas marcas do tempo, mas, quase cem anos depois, continua viva e conta a história da Família Castro. Ao Bem Paraná, a Mediadora Cultural Manoela Neves narrou um pouco dos “mistérios”. A casa em formato de estrela é símbolo da língua esperanto, uma forma de comunicação universal.
Outro exemplo é a Casa Gomm, que hoje é Patrimônio Cultural do Estado do Paraná. Construída em pinho, em 1913, foi a primeira edificação de madeira da capital. Tinha três andares, lembrando construções norte-americanas. Atualmente, está no Parque Gomm, no Batel.
Preservar as casas de madeira é uma das formas de contar a história do Paraná. No entanto, o arquiteto Fábio Domingo pontua que nem sempre foi assim. “A casa de madeira não durou porque as pessoas começaram a derrubar. Em Curitiba, não sobraram muitas. A maioria não tem dispositivo de proteção, então o proprietário pode demolir. Você poderia desmontar e remontar em outro lugar, como fizeram com a casa do Iphan. Aquela seria demolida, mas o instituto conversou com o dono e reconstruiu em outro espaço.”
“Ele é protegido porque é um bem coletivo. Precisamos preservar para que as novas gerações tenham acesso. E é importante existir uma relação afetiva da cidade com o bem, porque, sem isso, não há preservação possível. A perda é da memória e também da paisagem urbana. Perdemos o patrimônio material e o saber técnico que vem junto. Existe um fascínio pelo novo. A casa de alvenaria passou a representar status, enquanto a de madeira perdeu valor. Mas tínhamos casas de madeira enormes e sofisticadas. Só percebemos o que se perdeu quando quase nada resta”, lamentou o arquiteto.
Na PUC-PR, por exemplo, a direção discute formas de utilizar a Casa Estrela, de forma que seja um espaço útil e que fique conhecido pelos próprios alunos, que – muitas vezes – nem sabem da história da construção que fica no campus.
Do berço ao caixão: a madeira como peça-chave
A madeira é um dos materiais de construção mais antigos da história da humanidade. Antes mesmo do domínio do fogo e da descoberta dos metais, a madeira já era sinônimo de abrigo e matéria-prima para armas e ferramentas. Em 2023, pesquisadores da Universidade de Liverpool encontraram evidências do que poderia ser a estrutura de madeira mais antiga do mundo.
Nas margens do Rio Kalambo, na Zâmbia, o grupo encontrou uma estrutura de troncos de madeira e outros artefatos de pelo menos 476 mil anos atrás. As marcas de cortes retos em ambos os troncos sugerem que a construção tenha sido projetada por hominídeos, espécie ancestral ao humano. A descoberta, publicada na revista Nature, mudou a compreensão dos arqueólogos sobre o uso da madeira muito antes da evolução do homo sapiens.
Para o professor dos cursos de Engenharia Florestal e Engenharia Industrial Madeireira da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Rui Maggi, a vida não seria como a conhecemos caso a madeira não existisse. “Não se sabe como nossos antepassados teriam evoluído se não encontrassem na madeira a solução para seus problemas. Do momento que você nasce até sua última despedida, estará envolto em madeira, seja no berço do recém-nascido até o descanso final”, conta.
Ainda que o seu uso na construção civil seja antigo, a sua preservação industrial é recente. No Paraná, a tradição madeireira teve início com a exploração do pinheiro e, mais tarde, com o plantio de pinus e eucalipto. “Hoje, o estado tem mais de 3 mil e 500 unidades de processamento primário de madeira e quase 17% das carteiras de trabalho assinadas são ligadas à derrubada, transporte e processamento primário da madeira”, completa o professor.
Mas, afinal, de onde vem a madeira usada nessas casas?
Antes da chegada dos portugueses, a arquitetura indígena já utilizava a madeira em conjunto com a fibra vegetal para as suas construções. Com a colonização, as construções em pedra foram introduzidas nos centros urbanos do país. “Existe uma longa tradição latino-americana na construção em alvenaria. Como somos descendentes de ibéricos, o uso de argamassa e tijolos cerâmicos está ligado ao nosso passado”, explica Maggi.
O uso da madeira como matéria-prima se estabeleceu de vez no Brasil com a chegada da industrialização e das máquinas a vapor. No Paraná, a araucária, popularmente conhecida como pinheiro-do-Paraná, foi personagem central nessa história. O arquiteto Fábio Domingos Batista, autor da obra A Casa de Madeira: um saber popular, explica que características essenciais da espécie favoreceram o seu uso: “A araucária é uma madeira com um tronco retilíneo, logo, ela é fácil de desdobrar e é uma madeira de boa qualidade”.
Com a chegada de imigrantes de diversos cantos do mundo, a partir do fim do século 19, a necessidade por moradia chegou em picos nunca antes imaginados. No sul do país, os vastos pinheirais foram um prato cheio para que os povos aplicassem as suas próprias habilidades e estilos na construção de suas casas. No entanto, a partir da segunda metade do século 20, surge um novo concorrente: o tijolo.
Para o arquiteto, algumas hipóteses explicam o declínio das construções de madeira e a recuperação da técnica da alvenaria: “Primeiro, o acesso à casa de tijolo ficou mais fácil e acessível. Segundo, começou a se observar a destruição da floresta. Antes, era comum pegar pinheiro com mais de 100 anos, uma madeira de muita boa qualidade e mais durável. À medida que foi destruindo essas florestas, eles começaram a cortar pinheiros com baixa densidade e, assim, a casa não era tão durável”, explica.
Algo que causa dúvida falando da construção civil, é a origem dessa madeira. Afinal, a derrubada das árvores não seria desmatamento? Não necessariamente. Os especialistas relembram o peso de dois elementos nessa história. “A floresta não foi derrubada para fazer casas, ela foi derrubada para exportar madeira e ampliar a área agrícola. O Paraná exportou madeira para fazer fôrmas de concreto armado em Brasília. Nós temos registros de áreas que foram queimadas para usar na agricultura. O impacto da construção foi muito pequeno.”, ressalta Domingos.
“Quando cortamos uma árvore, estamos causando algum impacto na natureza. Mas essa atividade deve ser realizada dentro de certos limites, de forma responsável, analisando os efeitos com racionalidade. Quem agir fora dos limites técnicos e legais deve ser responsabilizado por suas ações”, ressalta Maggi. E, pensando nisso, em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), também conhecida como Eco-92, começa a discutir uma possível regulamentação.
Como funciona uma auditoria ambiental?
Rosemeri Segecin Moro é professora da pós-graduação na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e há quase 20 anos atua como auditora ambiental na SysFlor a partir da Forest Stewardship Council (Conselho de Manejo Florestal). A organização é uma das entidades responsáveis por fornecer certificação de boas práticas às empresas. “Nós temos um advogado que vê as questões legais e fundiárias, o biólogo que confere a parte ambiental, os engenheiros florestais e também os sociólogos e assistentes sociais que vão analisar a relação com a comunidade”, explica.
Para a auditora, a importância desse trabalho é invisível aos olhos da comunidade, mas ao longo das décadas teve um impacto positivo em toda a cadeia produtiva da indústria madeireira. “As empresas certificadas sempre estão recuperando o ambiente. Quando pegamos o histórico das áreas, você vê que elas já foram desmatadas no ciclo do café e depois com o gado. Na certificação, há um trabalho de correção de solo e controle dos processos erosivos. É um trabalho muito grande para corrigir e adequar”, ressalta.
Para quem relaciona a atividade ao desmatamento, a auditora esclarece que, hoje, essa crença é um mito: “Hoje não acontece. Se você ver alguma notícia no Paraná sobre área desmatada pode ter certeza que não é pelas madeireiras. Não existe mais uso de madeira nativa para a indústria madeireira sempre vai ser de plantação”, explica.
Pinus: amigo ou inimigo?
Segundo dados da Associação Paranaense de Empresas de Base Florestal (Apre), hoje a área de árvores plantadas no Paraná corresponde a 1.167.318 hectares. Desse total, 61% é de pinus e 38% de eucaliptos, sendo o estado responsável por mais de 54% do volume de pinus no Brasil. No dia a dia, ambas as espécies aparecem em produtos dos mais variados setores: de absorvente higiênico e fralda de criança (com base na celulose), a móveis e objetos de decoração.
Para a auditora Rosemeri Segecin, a sua importância econômica está diretamente ligada à sua adaptação ao território brasileiro: “Na Europa, as espécies que são utilizadas nas empresas são pinus nativos. Eles levam cerca de 25 anos para serem cortados para celulose e 50 anos para serem cortados como madeira para fazer móveis, por exemplo. No Brasil, é metade. Nós conseguimos o mesmo volume e a mesma qualidade na metade do tempo”.



Mesmo sendo espécies exóticas no território brasileiro, para a especialista, as espécies não devem ser consideradas amigas e nem inimigas da fauna nativa. “É uma árvore exótica, lógico que ela faz mal, porque não é do nosso ambiente. Ela tem que ser controlada, mas nesse ponto a legislação fornece todos os mecanismos para esse controle”, destaca a auditora.
A ideia das florestas plantadas é justamente preservar as árvores nativas, como é o caso das araucárias – usadas, por exemplo, na Casa da Baba há anos. Os dados da Apre mostram que para cada hectare de floresta plantada no Paraná, 1,06 hectare de florestas nativas é preservado.
Árvores plantadas: o futuro e presente das moradias
Para o futuro, umas das grandes aspirações é utilizar todo o potencial das florestas plantadas. A Águia Florestal, uma das empresas do setor no Paraná, criou um exemplar de casas que funciona, bem à grosso modo, quase como um lego de madeira.
O material é o CLT, sigla do nome em inglês Cross Laminated Timber, que é um material composto por lamelas de madeira coladas em camadas sucessivas, reaproveita sobras de madeira. As peças cruzadas formam estruturas resistentes e de montagem rápida. Por exemplo, uma casa pode ficar pronta em menos de uma semana.
A ideia nasceu após uma visita a uma feira na Alemanha, onde o diretor da empresa, Álvaro Scheffer, conheceu o CLT europeu, usado em construções de alto padrão. De volta ao Brasil, percebeu que as tábuas rejeitadas nas exportações poderiam ganhar uma nova vida. Em vez de irem para a caldeira, viraram painéis estruturais, resistentes e de longa durabilidade. “Conseguimos transformar o que seria o fim do ciclo da madeira em um produto que fixa carbono por mais 50 anos. É economia circular na prática”, explicou.

O processo inclui prensagem em camadas cruzadas, tratamento contra cupins, isolamento térmico e acústico, e acabamento selado com proteção contra umidade e fogo. O resultado é um painel estrutural que pode ser usado em casas, escolas e obras públicas, com tempo de montagem de até sete dias. O projeto da Águia Florestal foi criado para oferecer moradia de qualidade a custo acessível, sem abrir mão da sustentabilidade.
Se no passado as casas de madeira guardavam histórias, hoje elas também projetam o amanhã e representam o hoje, como explica o professor Rui Maggi, mais do que o material do futuro, a madeira é parte essencial da história humana: “Colocar a madeira como material do futuro é criar uma expectativa que desmerece o papel dela no passado ou mesmo nos dias de hoje. A madeira é um material do passado, do presente e do futuro.”
O arquiteto Fábio Domingos reforça o valor ambiental: “A madeira sequestra carbono e pode ser plantada e colhida. É um material durável, de baixo impacto e com ótimo conforto térmico.” Rosemeri Segecin concorda: “É um recurso renovável, que dá empregos e traz bem-estar. Até os antigos vão te dizer: casa de madeira é uma delícia.”