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Foto: Arquivo Pessoal

O futebol é uma paixão que une milhões de pessoas, mas, para indivíduos no espectro autista, a experiência de assistir a um jogo em um estádio pode ser avassaladora. Os ruídos altos, as multidões, as luzes intensas e a agitação geral podem causar sobrecarga sensorial, gerando ansiedade e desconforto. Quem vive na pele o que é amar um time e não poder participar de um jogo no estádio sabe bem o que é isso. Esse é o caso de Lara França, que hoje, aos 19 anos, não consegue vivenciar sua paixão pelo time do coração, o Athletico Paranaense, já que o Estádio Mário Celso Petraglia (Ligga Arena), em Curitiba, não oferece salas sensoriais que permitam inclusão e acessibilidade para este público em especial.

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“O tataravô de Lara (Arnaldo Siqueira) foi um dos fundadores do clube Athletico Paranaense. Foi ele quem redigiu a ata de fundação do clube em 1924. É um amor que passa de geração em geração e, com a Lara, mesmo sendo autista, não poderia ser diferente. Ela foi criada desde sempre com uma camisa do Athletico e um ingresso na mão”, conta seu pai, o músico curitibano Tato França.

Ele revela que, por conta da condição, com o passar dos anos, a sensibilidade auditiva da filha foi ficando mais latente e, por conta disso, ela deixou de frequentar o estádio, mesmo gostando muito de estar lá torcendo pelo time, que carinhosamente chama de “gol”.

“Como qualquer adolescente ela tem suas paixões, mas, devido ao autismo, são ‘hiperfocos’”, explica França sobre o estado de concentração intensa ao envolver-se em uma tarefa, característica comum em pessoas no espectro autista. “Além do gol, ela gosta muito do ônibus da escola, do salão de beleza, da prima Amelie e do Scooby-Doo. É uma pessoa muito bem-humorada, um amor de menina”, completa o pai.

Segundo França, o estádio, apesar de ser um dos mais modernos da América Latina e ter recebido jogos da Copa do Mundo de 2014, não conta com uma sala sensorial para autistas. “É um espaço muito importante, pois eles podem se regular em caso de uma crise, por exemplo. A sala também é blindada em relação ao som e, de lá, um autista pode assistir a uma partida de futebol com tranquilidade, sem que a sua sensibilidade seja agredida”, explica. “Infelizmente, apesar de diversas tentativas de diálogo com o clube e apoio de grupos de pais que também sentem essa necessidade, o Athletico Paranaense não deu ouvidos a esta demanda tão importante”, avalia o músico.

Paixão de longa data


Lara teve o diagnóstico de autismo suporte 3, ou seja, faz tudo sob supervisão, desde a infância. Atualmente tem acompanhamento da família e diariamente frequenta as atividades das APAE Curitiba, entidade que o pai também faz parte da diretoria.

Uma de suas primeiras idas a um estádio foi com apenas três anos de idade e ao lado de Tato, também apaixonado pelo time, conseguiu assistir ao jogo Athletico e Palmeiras na torcida organizada, conhecida como Os Fanáticos. “Era um toco de gente e viu comigo, devidamente fardada, os times empatarem em 2×2. Mas agora, com a sensibilidade muito alta, não conseguimos mais usufruir de momentos assim. Somente com espaço preparado e acolhedor, como a sala sensorial, poderíamos repetir esse programa tão amado pela família”, conta o pai.

Local oferece tampões de ouvido, mas medida é insuficiente, diz pai de autista


Atualmente o estádio oferece alguns tampões de ouvido para o público que necessita abafar o som. Porém, nem sempre a medida é suficiente para ajudar a uma pessoa autista ser incluída na torcida. É exatamente o que acontece com Lara: mesmo com um abafador de som de ponta no mercado providenciado pela família, ela não consegue acompanhar as partidas por causa dos outros estímulos.

“O abafador, seja o que podemos usar ou o oferecido pelo clube, não é a única coisa que pode ajudar um autista. O mínimo era investir em um espaço adequado para acolher este público. O clube deveria entregar o quanto antes uma sala sensorial com capacidade de pelo menos 15 torcedores mais 15 acompanhantes. Seria o mínimo para um estádio com capacidade para mais de 40 mil pessoas. Infelizmente sinto uma falta de interesse por essa parcela de torcedores”, explica o músico.

França ainda lembra um ponto importante da luta pela inclusão dos autistas na sociedade paranaense: o Código Estadual da Pessoa com Transtorno do Espectro Austista, sancionado em 2024. “Foi uma conquista importante, pois o Código unifica várias leis vigentes no Paraná que tratam de temas como política de educação, saúde, mercado de trabalho, segurança pública, combate à discriminação, financiamento de projetos e mais inclusão da comunidade autista. Acredito que ao não proporcionar salas sensoriais, o clube não respeita esse documento”, diz.

Outros estádios que incluem torcedores


Diversos times do Brasil e do mundo já entenderam a importância de investir em espaços de acolhimento para neurodivergentes. Por aqui, os estádios do Coritiba, Corinthians, Palmeiras e Botafogo já contam com salas sensoriais.

Clubes internacionais, como o Manchester United (Inglaterra), Seattle Sounders (EUA) – pioneiro em salas sensoriais na Premier League – e o Sporting CP (Portugal) também investem na inclusão e até mesmo no treinamento de funcionários para apoiar as pessoas com necessidades sensoriais especiais e suas famílias e acompanhantes.

“Apesar da Lei Brasileira de Inclusão garantir a acessibilidade e o atendimento adequado a pessoas com autismo em eventos esportivos, não existe uma obrigatoriedade sobre espaços específicos. Algumas cidades, como o Rio de Janeiro, até possuem leis municipais para isso, porém, ainda é muito pouco perto do que é possível fazer para incluir os autistas”, fala o pai da Lara.

Dia Mundial de Conscientização do Autismo


O Dia Mundial de Conscientização do Autismo, celebrado em 2 de abril, é uma data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e desde 2008 promove a inclusão, o respeito e a compreensão sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA).

“Com o assunto na pauta, muitas homenagens e debates são realizados pela sociedade, porém a falta de apoio de locais como clubes de futebol é clara. Ficamos muito tristes pelo tema não ser realmente levado a sério. Ouvir as reais necessidades importa muito mais que ações mínimas que só trazem marketing. Queremos ser incluídos, queremos que nossas filhas e filhos possam viver em um mundo mais acolhedor e equitativo”, afirma Tato.

Atualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que haja dois milhões de brasileiros autistas, o que significa 1% da população no espectro.

No Paraná, são aproximadamente 18.4 mil pessoas com Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (CIPTEA).

“Me sinto excluído, sinto minha filha excluída”, diz pai de autista

“Me sinto excluído, sinto minha filha excluída. Vivemos num mundo em que todas as pessoas merecem ter a oportunidade de estarem juntas em um evento social. Que os times, principalmente o Athletico, deixem de lado a ganância e se tornem mais empáticos com a comunidade autista. Nosso sonho é estar novamente juntos e felizes assistindo a um clássico com conforto e segurança. Tenho certeza também que é o sonho de muitas famílias que enfrentam algumas barreiras para incluir suas crianças e jovens em atividades assim”, finaliza Tato.

Nota do Athletico

Em nota encaminhada à redação do Bem Paraná, o Athletico informou que, conforme divulgado entre os pilares sociais da Fundação CAP, no Relatório Anual de Atividades e Balanços (2024), o clube possui os projetos para acessibilidade.

“Com o objetivo de proporcionar uma experiência mais inclusiva e confortável para os torcedores, o Athletico Paranaense, em parceria com a Fundação Club Athletico Paranaense, tem se empenhado em buscar alternativas que melhorem o acolhimento e a recepção dos torcedores no estádio. Visando atender um público que evita frequentar os estádios devido à intensidade do som durante as partidas, uma nova ação foi implementada: a disponibilização de abafadores de ruído. Com o início da operação em março de 2024, a Fundação Club Athletico Paranaense iniciou uma ação piloto com a oferta gratuita de abafadores de ruído para torcedores com sensibilidade auditiva. Essa medida teve como objetivo garantir maior conforto a pessoas que sofrem com os altos decibéis típicos de um jogo de futebol, como é o caso de indivíduos com transtorno do espectro autista (TEA) e outras condições similares”, afirma a nota do clube.

Segundo o Athletico, os abafadores de ruído estão disponíveis nos guarda-volumes da Ligga Arena, localizados nos portões de acesso: “Para esta ação piloto, foram disponibilizadas 15 unidades exclusivas para torcedores do Furacão com sensibilidade auditiva. A mesma acessibilidade foi garantida para a torcida visitante, com 5 abafadores. Durante 2024, 304 pessoas em 31 jogos fizeram o empréstimo dos abafadores. É importante também ressaltar que não houve extravio ou perda de nenhuma das unidades emprestadas”.

Para o ano de 2025, de acordo com o clube, a tendência é aumentar o número de abafadores, devido à demanda ter sido crescente durante o ano.

Sobre a Sala Multissensorial, o clube afirma que em 2025, a Fundação visa a implantar uma sala de autorregulação na Ligga Arena: “A sala tem como proposta central o atendimento da demanda imediata por acessibilidade nos dias de jogos e também busca estabelecer a base para um projeto social de longo prazo. A Fundação CAP visa transformar esse ambiente em um centro de excelência para inclusão e atendimento social, através de uma clínica que será o parceiro especialista nos atendimentos”.