Em meados da década de 70, Carlos Valdemar da Silva da Costa não imaginava a proporção que seu talento pelo desenho e a curiosidade comum de todo adolescente iria o levar. Vindo de Arapongas, interior do Paraná, o jovem de pouco mais de 14 anos encontrou no desenho um caminho para dar conta da necessidade da fome, do frio, da solidão. Como mochileiro, não foram poucas.
Chegou na época da neve, em 1975. E foi na Rua XV, a conhecida Rua das Flores, onde encontrou as primeiras oportunidades através da arte. Quem diria que os traços e pinturas feitos no guarda-roupa da mãe, ali pelos seis anos, — inclusive o retrato de Cristo — renderiam tantos frutos! Autodidata, o dom iria levar Da Costa a empreender e abrir o primeiro estúdio de tatuagem da capital. E não parar mais.
Naquele início, morou em pensão, trabalhou como chapeiro em uma lanchonete, e um dia passou a fazer retratos. A clientela interessada fazia fila para ter uma imagem realista do adolescente.
“Eu e minha ‘caixinha de fazer arte’ ficávamos até a polícia pedir para eu parar porque a rua enchia de gente, e o pessoal precisava circular.” E mesmo com todo o preconceito e dificuldades, da ilustração no papel foi um pulo para perpetuar na pele.
“Um dia chegou um hippie, vendedor de bijuterias, que viu que eu desenhava bem e me pediu para fazer um traço no braço dele. Nunca tinha feito nada parecido, nem sabia por onde começar.” O pontapé inicial foi dado com as dicas ouvidas entre o ir à extinta Papelaria Requião, que ficava na Alameda Dr. Muricy, para comprar nanquim e a adaptação de agulhas coladas em um suporte.
“Molhava a ponta na tinta e mandava aço. Acabei gostando daquilo”, conta, divertido. Lembra que é de uma época romântica que recebeu o freio com o advento da aids, na década de 80. Mas isso só o fez se adaptar.
A porta para rua surgiu em um espaço na Rua Desembargador Westphalen, no Centro. O primeiro estúdio de tatuagem nasceu na década de 80. “Durante o tempo que fazia os retratos, mantinha uma pequena placa na caixinha de pintura, com texto escrito a mão ‘faço tatuagem’, e nem se ouvia falar em estúdio, mas um dia eu quis ter meu lugar”. E assim aconteceu: a pessoa interessada passava, entrava e fazia o pedido. Sem hora marcada. Só pelo prazer de perpetuar um desejo.
Gerações
Há mais de 20 anos, trabalha por indicação. Diz ele que cansou desse discurso “de quanto custa a tatuagem?”. Para tudo tem uma lógica e valor, desde uma joaninha até a cobertura de um trabalho. Tem uma postura despretensiosa de não se importar se o cliente quer um retrato ou um tribal, somente executa da melhor maneira para que o projeto seja o mais fidedigno. “Tenho que entregar o desejo para o cliente.” Dom Costa admite que tem quem o ache chato, e tudo bem. Quem o procura sabe o que vai encontrar. E na lista de clientes – antigos e novos – tem de tudo. Atende gerações, mas seu foco, atualmente, são os de mais de 40 anos. De empresário, políticos, advogados, gerente de banco e até um padre holandês. “São pessoas que sabem o que querem, não tem a empolgação do jovem.”
E quando fala de gerações, vai além dos filhos e netos de clientes. Dos 4 filhos, dois seguem os passos do pai com tatuagem. E assim como perpetuou desejos tatuados na pele com os pais, filhos e nora, vai deixar sua digital em telas e na maior delas, a pele que leva a assinatura da confiança e respeito.
“Gosto do trabalho elaborado;o fazer qualquer coisa não me satisfaz”, comenta ao lembrar do prazer do tempo quando morou fora de 1999 a 2022, na ponte aérea entre Europa e Brasil. Desse tempo, gostou muito da permanência na Alemanha. Tem desejo de conhecer Israel – “não da parte que está em conflito” porque tatuagem é universal, e tudo é aprendizado e troca.
De uma simplicidade única, ele relembra a trajetória. Da pintura automotiva a tatuagem, de chargista a fotolitagem. Tem o hobby de colecionador de carros antigos para arrumar e vender. Nos guardados, tem as premiações daqui e de fora, e são muitas, mas não é o que mais importa. “Dom Costa não deixa de ser o que é por conta de um troféu”, define. O desejo futuro é voltar a pintar telas e retomar a veia do artista plástico. Voltar à Europa também faz parte dos planos. “Ainda mais uma vez”. Por enquanto, a chácara de Agudos do Sul, na Região Metropolitana, é seu lugar de paz.
SAIBA
Trajetória
Aos 61 anos, Dom Costa tem muita história para contar. A barba branca, o uso do óculos e a diabetes, que surgiram nos últimos tempos, são uma ínfima parte do reflexo da experiência de vida. E como! O título que precede o sobrenome veio reconhecer, despretensiosamente, a maestria do seu trabalho. Se antes era o Da Costa, marca gravada em telas de quadros que ainda estão em galerias aqui e algumas pelo mundo, também existe o carinhoso Papito entre aqueles que mantém a intimidade, e o mais conhecido Dom Costa, recebido certo dia por um amigo e empresário italiano. Gostou da sonoridade e ficou!
E o mestre perdeu as contas de quantas tatuagens já fez na vida. Muitas, milhares, uma conta sem fim. Nas lembranças, pontua que a década de 80 foi o ápice da carreira, a “febre da tatuagem”. Entre elas, o trabalho em um festival, na Praia de Joaquina, no litoral de Santa Catarina, onde ganhou mais dinheiro em uma semana do que em muitos anos. E tem a da época Rio de Janeiro, quando foi trabalhar em um estúdio de um amigo, e na brincadeira fizeram as contas. Foram mais de 1.700 tatuagens, somente em Copacabana.