
A cada dois minutos, em média, um caso de violência contra a mulher é registrado no Paraná. Só em 2023, como revelou na quarta-feira (6) o Bem Paraná, 231.864 ocorrências desse tipo foram registradas em todo o estado. E sabedora (por experiência própria) da violência que atinge as mulheres, uma cervejeira curitibana decidiu fazer algo e ousou não se calar: é a Janaína Pinho, que em parceria com a cervejaria Ignorus lançou, em 2020, o projeto Não Me Kahlo. Trata-se de uma cerveja especialíssima e limitada (todos os anos, entre os meses de março e abril, são produzidos 2 mil litros da bebida), que reverte parte dos seus lucros para projetos que apoiam vítimas da violência de gênero.
No quarto ano de projeto, a Não Me Kahlo deve ser lançada no final de março e chegará ao mercado em meados de abril, trazendo uma grande novidade: após três anos com uma Double IPA, em 2024 a cerveja Não Me Kahlo que será lançada é uma Session IPA.
“Até o ano passado ainda era uma Double IPA, com 90 de IBU e 8,5% de álcool. Quer dizer, uma cerveja extremamente encorpada, amarga pra caramba. E eu queria que ela representasse de fato essa dificuldade que a gente, porque tudo é demais quando uma mulher sofre violência”, explica Jana, relatando que a cerveja fica quase de uma cor vermelha por causa da adição de pitaya. “Esse ano ela volta com uma Session IPA, que também tem um pouco de amargor, mas ela é leve, tem uma drinkability leve, aquela coisa de poder comemorar, mesmo com amargor. Mesmo que seja difícil, a gente pode ter leveza, e é o que a gente traz para ela esse ano”, complementa.
Como surgiu e qual o impacto do projeto?
Segundo Janaína, a ideia de criar a Não Me Kahlo surgiu há alguns anos. Primeiro, ela começou a tomar mais cerveja há 11 anos e há sete já atua profissionalmente na área, como cervejeira e sommelier de cervejas. Mas a inspiração para o projeto veio a partir de suas experiências pessoais.
“Eu tive uma infância muito complicada, sofri episódios de agressão e violência física muito grandes”, relata, contando que na sequência se envolveu em um relacionamentos também abusivos.
Logo após o segundo divórcio, então, ela decidiu criar a Não Me Kahlo. “Falei ‘eu preciso fazer alguma coisa’. A gente tem que ter a chance de mostrar o que a gente pode fazer com os nossos pedaços, porque, de fato, uma mulher que sofre, que é vítima de violência, muito dificilmente ela consegue se reerguer 100%, a gente sempre fica com marcas. Então [o projeto] fooi uma forma de trazer esse aviso.
É um trabalho, uma causa para mostrar aos homens que eles não vão nos calar em absoluto, que agressor não vai ficar impune. A Não Me Kahlo é para isso: a ideia é que ninguém dê espaço para que ninguém faça nada sem que seja com 100% de consentimento. Eu não me permito mais dizer ‘tudo bem’. Eu vou ter a minha voz, vou ter o meu espaço e não vou deixar de falar.”

Três projetos já foram apoiados pela iniciativa
A cerveja Não Me Kahlo é sempre produzida no mês de março e um detalhe curioso é que na parte de baixo da lata, onde fica gravada a validade da bebida, é feita uma gravação a laser onde está escrito “Ligue 180”, uma menção à Central de Atendimento à Mulher.
“Esse é um dos destaques mais legais, não existe nenhuma lata hoje no Brasil que tenha um recado tão importante, que é o disque-denúncia de violência contra a mulher. Então cada detalhe a gente pensou, realmente, para fazer a coisa assim, o mais gritante possível, o mais impactante possível”, afirma Jana. “Resolvemos fazer sazonal porque, se a gente coloca ela todos os dias, o interesse das pessoas diminui. Então a gente faz todo ano 2 mil litros dela e estamos entrando agora no quarto ano do projeto. A gente consegue fazer com que as pessoas se interessem e aí uma parte da renda é revertida para uma ONG que escolhemos”.
No primeiro ano, por exemplo, a ONG Mais Marias foi apoiada. No segundo, foi a vez da Todas Marias. E no ano passado, o Grupo Batom, uma instituição que ajuda mulheres no processo de ressocialização. “As duas primeiras [ONGs que apoiamos] acolhem diretamente as vítimas de violência e essa terceira já participa mais do primeiro processo de cura, quando a mulher começa a voltar para o mercado, volta a se estruturar para poder ter a sua autonomia novamente instituída com a ajuda dessa ONG”, comenta Jana.
Para este ano, ainda não se sabe qual instituição será apoiada – a decisão deve ser tomada no começo do segundo semestre e, enquanto isso, Jana e a Ignorus conhecem mais sobre algumas postulantes que receberão os valores oriundos da venda da cerveja Não Me Kahlo. “Falamos que revertemos 20% do faturamento, mas todo ano a gente repassa 25%, 30%. A própria Ignorus costuma repassar um valor um pouco maior para apoiar os projetos e a ideia é essa. A lucratividade real, pra mim e pra Ignorus, os valores são irrisórios, bem baixos. O grande aporte mesmo vai pra instituição que escolhemos apoiar”, esclarece.
“Essa foi a história mais impactante”
Ao longo dos quatro anos de projeto, a Não Me Kahlo já fez a diferença na vida de muitas mulheres. Mas uma dessas histórias é especial. “Uma das ONGs que apoiamos estava com uma encarcerada que há muito tempo estava tentando a liberdade, faltava um valor para poder tirar ela [da prisão], pagar o advogado e o resto do trâmite para que ela fosse libertada. E aí me contaram a história dela.
Conforme o relato, essa mulher que estava presa morava na periferia de Curitiba, era bastante pobre e vivia numa região marcada pela violência e com um homem extremamente violento. Ela já tinha tido vários ossos do próprio corpo quebrados pelo agressor e chegou até a ficar em coma por causa disso. “Ela tinha um filho de um relacionamento pregresso e esse homem batia muito nessa criança também, judiava muito dessa criança. Inclusive, todas as vezes que ela apanhava, era porque ela realmente queria defender esse filho
Só que um dia esse homem bateu nessa mulher e ela desmaiou, caiu no chão e só acordou seis horas depois. E quando acordou, o corpo do filho estava ao lado. “Ele tinha matado o filho dela. Ele agrediu a criança e o menino, que tinha cinco anos, bateu a cabeça numa quina, teve afundamento de crânio e faleceu. Quando ela recobrou a consciência, viu o corpo frio do filho dela ao lado”
Foram dois dias com essa mãe deitada, abraçada ao cadáver do filho na sala de casa. Dois dias inteiros sem comer, sem beber, sem nada. O companheiro, por sua vez, já havia fugido, pois sabia que havia matado o menino. E a situação toda só foi descoberta quando uma vizinha, percebendo que não tinha movimentação na casa ao lado, foi até lá verificar o que havia acontecido. “Quando chegou lá, encontrou a mãe que só chorava, não conseguia falar, e foi levada ao hospital. Fizeram todos os trâmites com o menino para o sepultamento e ela ficou bastante tempo em CAPS, fazendo tratamento e tudo mais.”
Quando voltou para casa, essa mulher passou a ficar muito quieta. Foram quase seis meses falando pouco, praticamente sem se comunicar. Mas o que ninguém sabia é que nesses seis meses a mulher estava tentando localizar o ex-marido e assassino de seu filho. E quando ela conseguiu encontrá-lo, foi atrás de sua vingança. O matou e em seguida se entregou à polícia, sendo presa em flagrante.
“Num desses anos, quando a gente foi doar o valor da Não Me Kahlo, mais da metade do montante foi destinado para tirar essa mulher da cadeia. Essa foi a história mais tocante. Eu conheci várias, mas essa foi a que mais me tocou, porque ela provavelmente estaria encarcerada até agora não fosse a ajuda do projeto para a ONG”, comenta ainda Jana, emocionada.
Fique de olho
A Não Me Kahlo deve ser lançada neste ano entre o final de março e meados de abril. Para ficar de olho no lançamento e também garantir a sua cerveja, acompanhe as redes sociais de Janaína Pinho (@Multiversodacerveja) e da Ignorus Cervejaria (@ignoruscervejaria).