Paraná

Fake news como arma de identidade: por que mentiras unem grupos

Ana Ehlert
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Estudo da UFPR mapeia a emoção como principal motivação para compartilhamento de notícias falsas.(Divulgação)

As notícias falsas, chamadas de fake news, são um componente do cotidiano. São conteúdos montados com dados, as vezes reais, mas com informações inverídicas ou distorcidas. E, em tempos de polarização, é exatamente o tipo de conteúdo que se propaga rapidamente pelas redes sociais. E o motivo é o mesmo que levas as pessoas a adotarem comportamentos controversos quando em grupo: a identificação.

Essa, em linhas gerais, é a conclusão de um estudo da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A análise usou dados da pesquisa do Instituto DataSenado, divulgada em agosto de 2024. O levantamento revelou que 72% dos usuários de redes sociais tinham visto notícias que consideraram falsas nos últimos seis meses.

Os entrevistados também foram perguntados sobre qual seria o motivo para a disseminação desses conteúdos: 31% achavam que quem compartilha quer mudar a opinião dos outros; 30% pensavam que o compartilhamento é pelo desconhecimento sobre a veracidade das supostas notícias. Mas essa motivação ainda é uma questão em aberto e intriga cientistas.

A dúvida foi o ponto inicial da tese de doutorado “O bem versus o mal: fake news como arma das batalhas morais em disputa nas guerras culturais” da bibliotecária Cristiane Sinimbu Sanchez, servidora técnica da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da universidade. A ideia de investigar o tema surgiu na pandemia de covid-19, quando Sanchez percebeu que a desinformação estava abalando questões de saúde pública e de outros âmbitos políticos.

“Entendemos as fake news não apenas como informações falsas. Um pressuposto dessa pesquisa era de que esses conteúdos estavam sendo utilizados como dispositivos de disputa de sentido, principalmente quando envolviam questões morais. Trata-se de um produto elaborado com a intenção de enganar e levar ao erro, projetado para se espalhar com facilidade nas redes sociais”, afirma.

Entre as principais conclusões da tese, está a constatação de que as pessoas não compartilhavam fake news apenas por desconhecimento, e sim de forma consciente (e até estratégica) para reforçar crenças morais e visões de mundo. Para o professor e orientador da pesquisa, Rafael Cardoso Sampaio, isso indica que o combate à desinformação vai além de corrigir esses conteúdos para que as pessoas compreendam a realidade dos fatos.

“Pesquisas como a de Cristiane evidenciam que a questão é mais complexa. Não se trata simplesmente de pessoas sem acesso à informação verídica. Há uma série de razões que levam os indivíduos a acreditar e compartilhar notícias falsas”, diz o professor.

“Mais do que isso, muitas vezes as pessoas as compartilham mesmo sem acreditar nelas, utilizando a desinformação como uma estratégia política e eleitoral. O objetivo passa a ser causar dano a um adversário ou manter a confusão informacional para além de seu próprio grupo”.

Para compreender o problema, a pesquisadora fez a mediação de 12 grupos focais, buscando verificar como os participantes interagiam com conteúdos falsos. Os grupos contaram com participantes de faixas etárias e posicionamentos políticos distintos (Centro, Esquerda e Direita).

“Com essa estrutura, a gente queria perceber as diferenças geracionais e como o espectro político influenciava na relação que as pessoas desenvolvem com os conteúdos enganosos”, diz Cristiane. “Isso para perceber, por exemplo, como jovens e idosos se relacionam com essas plataformas de desinformação”.

Conteúdos falsos com temas polêmicos

A forte presença das fake news no cotidiano das pessoas levou à criação de agências de checagem, e uma das metodologias de Sanchez foi a análise de notícias falsas verificadas pela Aos Fatos entre 2022 e 2023. O objetivo era identificar os principais temas desses conteúdos e suas formas de compartilhamento. A catalogação foi feita com auxílio do software MAXQDA.

Dos conteúdos analisados pela pesquisa, 70% circularam em redes sociais; 55% eram completamente inventados, enquanto 30% eram informações reais apresentadas em contexto enganoso. As fake news focavam em temas sensíveis como política, religião, gênero, educação e saúde; os alvos principais eram vacinas, escolas, tribunais superiores e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

As peças catalogadas também apresentavam características visuais em comum, como letras garrafais, layouts que imitavam jornais tradicionais e falas dessincronizadas em vídeos.

Os grupos focais fizeram parte da segunda metodologia escolhida por Cristiane para entender o compartilhamento das fake news. Os 71 participantes foram recrutados por meio de uma empresa especializada e eram pessoas residentes na cidade de Curitiba, com equilíbrio entre homens e mulheres, renda e escolaridade. Foram separados quatro grupos por alinhamento ideológico, nas faixas etárias de 18 a 30 anos; 31 a 40 anos; 41 a 50 anos e 51 a 65 anos.

Compartilhamento é estratégico e consciente

“Muita gente compartilha mesmo sabendo que aquele conteúdo pode ser falso. Isso acontece porque aquilo reforça uma crença, uma identidade, uma visão de mundo, como se fosse um gesto de pertencimento e de posicionamento”, explica Cristiane. “É quase como dizer ‘é isso que eu defendo, venha junto comigo, é isso que é o correto e o valor que a sociedade precisa defender’”.

A tese revelou algumas diferenças de percepções em relação à faixa etária e espectro político dos participantes dos grupos focais. De acordo com a pesquisa, os participantes que se identificavam como sendo de direita apresentam uma tendência a rejeitar a imprensa tradicional, confiando mais em canais alternativos ou perfis de políticos. Os participantes de esquerda se mostraram mais confiantes em relação à grande imprensa, enquanto os de centro apresentavam uma desconfiança generalizada.

“As pessoas mais velhas, em geral, usam mais WhatsApp e Facebook, confiam muito nas redes pessoais. Se um conteúdo, mesmo que duvidoso, vem da família ou amigos, eles tendem a confiar e repassar cegamente”, afirma Cristiane. “Os mais jovens preferem redes como Instagram, X e TikTok. Eles parecem ser um pouco mais críticos, mas também estão expostos a esse conteúdo um pouco mais emocional e muito mais rápido”.

Pesquisadora defende políticas públicas

Os resultados da tese vão além da compreensão da motivação por trás das fake news. Para Sinimbu, o estudo dá um passo para indicar que deve haver uma mobilização de ações para o combate à desinformação, que vão além de uma educação midiática para que os usuários das redes sociais saibam identificar conteúdos falsos ou regulação das redes sociais.

Entre as iniciativas que a pesquisadora sugere, estão campanhas que busquem focar e valores plurais e empatia, e também núcleos de escuta intergeracional em bibliotecas, CRAS e escolas, já que a tese sugere que as fake news funcionam como marcadores identitários e reforço de laços grupais.

“A gente precisa de políticas públicas que levem em conta os vínculos afetivos e culturais. Não basta só dizer ‘Isso é falso’. É preciso dialogar com as pessoas, porque aquilo ressoou em alguém. Fake news são mais do que mentiras, são um sintoma e um combustível para essa disputa”, afirma. “Precisamos promover espaços de conversa, reforçar a importância da escuta crítica. Essa é uma mensagem importante da tese”.

 Leia a tese “O bem versus o mal: fake news como arma das batalhas morais em disputa nas guerras culturais”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPR

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