Indústrias do Paraná se tornam porta de entrada para imigrantes em busca de recomeços

José e Danielys deixaram a Venezuela em busca de uma nova vida e encontraram oportunidades em fábricas da Região Metropolitana de Curitiba

Isabelle Gesualdo e Josianne Ritz
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José abriu caminho como o primeiro venezuelano contratado pela empresa, que atualmente conta com 48 migrantes (Foto: Franklin de Freitas)

Às vezes, a vida exige mudanças drásticas. Seja um novo emprego, uma cidade diferente, um relacionamento que chega ao fim ou até mesmo a travessia para outro país, recomeçar é sempre um ato de coragem. E essa coragem se torna ainda mais desafiadora quando se é pai de família e se tem filhos pequenos.

É nesse contexto que chegam ao Brasil milhares de imigrantes em busca de melhores condições de vida. Entre eles está José Gregório, venezuelano que precisou tomar uma das decisões mais difíceis de sua vida: deixar para trás o país onde cresceu, viu seus filhos nascerem e enfrentou, dia após dia, uma economia cada vez mais instável.

O estopim para a mudança foi o câncer da mãe. A escolha por Curitiba não se deu apenas pela fama de qualidade de vida, mas por uma razão concreta e decisiva: as boas referências no tratamento oncológico oferecido na cidade. Para equilibrar custos e oportunidades, a família optou por se instalar em Fazenda Rio Grande, na Região Metropolitana.

A realidade que José deixou para trás ajuda a entender a dimensão dessa escolha. Na Venezuela, o salário mínimo oficial está congelado desde 2022 em 130 bolívares por mês, o que hoje equivale a cerca de 1 dólar. 

Com a desvalorização da moeda e a inflação descontrolada, o poder de compra dos venezuelanos praticamente desapareceu, tornando o salário mínimo uma referência simbólica diante do alto custo de vida no país.

Em menos de três semanas em Curitiba, José já havia conseguido um emprego na Plastilit, empresa de produção de tubulações. Começou como auxiliar de produção e, em três anos, conquistou três promoções. Hoje, ocupa o cargo de inspetor no estágio dois dos quatro disponíveis. 

Com olhar atento, Josué inspeciona cada lote de canos, garantindo a qualidade do produto final (Foto: Franklin de Freitas)

José se tornou o primeiro venezuelano da empresa, que agora conta com 48 migrantes entre cerca de 800 colaboradores. O imigrante inspeciona lotes de canos, garantindo que tudo esteja dentro dos padrões de qualidade. Lembrando o primeiro dia de trabalho, ele conta:

“Eu entendi uns 50, 60% do que ele [o líder] falava, por causa do barulho da fábrica e do nervosismo. Mas ele me acompanhou até eu aprender. Começar a crescer em uma empresa, sendo estrangeiro e sem dominar o idioma, é uma bênção. Acho que é Jeová Deus que leva a gente, ajuda a se estabilizar. A gente já vem de sofrer, de perder tudo. Começar do zero e ter essa ajuda, é bacana.”

Os desafios iniciais, segundo José, não foram apenas profissionais. O idioma e o jeito reservado dos curitibanos exigiram adaptação cultural. “Se você passar na rua e der um bom dia, ninguém responde. Nós somos de abraçar, dar beijo, cumprimentar, conversar. É da nossa cultura.”

No entanto, o tempo trouxe familiaridade e aceitação. Hoje, ao andar pelos pavilhões da fábrica, José é cumprimentado por todos. “Às vezes alguém liga para o laboratório e sabe que sou eu, mesmo sem me ver”, comenta. A simpatia e dedicação transformaram José quase em um “mascote” da empresa.

Apesar de ser formado em Turismo, José não conseguiu validar seu diploma no Brasil. O objetivo agora é investir em uma segunda graduação, mirando um futuro como analista.

“O conhecimento não ocupa espaço. Continuar aprendendo e crescendo é essencial. Minha primeira formação não foi fácil: passei fome, morei de favor. Agora quero continuar crescendo, sem desmerecer nenhum trabalho, mas buscando sempre mais.”

Como os imigrantes são acolhidos nas indústrias do Paraná 

Recomeçar em um país novo exige coragem, resiliência e, muitas vezes, o apoio certo. É exatamente esse auxílio que o programa Indústria Acolhedora, da Federação das Indústrias do Paraná (Fiep), está oferecendo a migrantes que chegam ao estado em busca de novas oportunidades. 

Com histórias como a de José e de Danielys (descrita abaixo), o projeto mostra como acolhimento e integração podem gerar impactos reais na vida de pessoas e nas indústrias locais.

Segundo Aline Calefi, gerente de responsabilidade social do Serviço Social da Indústria (Sesi), o programa surgiu para responder a duas demandas urgentes: a grande quantidade de migrantes que chegam ao Paraná e a falta de mão de obra nas indústrias da região. O estado, inclusive, é o quarto maior polo industrial do País, atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. 

“O objetivo é promover a inclusão do imigrante na indústria do Paraná, ajudando-o a recomeçar sua trajetória profissional e, ao mesmo tempo, suprir a necessidade de mão de obra qualificada nas indústrias”, explica Aline.

Entre 2017 e 2022, o Paraná se consolidou como um dos principais destinos de migrantes no Brasil. O estado recebeu 377.237 pessoas de outros estados e países, segundo dados divulgados em 2024 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, foi o segundo em naturalizações, com 32.394 estrangeiros se tornando brasileiros e escolhendo morar no estado.

A migração internacional tem origem predominantemente latino-americana. Sozinha, a Venezuela contribuiu com 22.125 novos residentes. Outras nacionalidades com presença significativa são Paraguai (7.709 migrantes), Haiti (3.971), Argentina (1.787) e Cuba (1.107).

O programa Indústria Acolhedora funciona como uma jornada em quatro etapas: desde a formação de uma rede de apoio com organizações como Cáritas, Organização Internacional para as Migrações (OIM) e Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), passando pelo cadastramento de currículos e capacitação de líderes, até oficinas socioculturais que ensinam língua portuguesa e noções básicas da legislação trabalhista brasileira. 

O objetivo é garantir que o migrante compreenda seus direitos e deveres e esteja pronto para atuar na indústria de forma segura e produtiva. 

Comparativo das leis trabalhistas Brasil x Venezuela

Jornada semanal e descansoRegra constitucional de 8h/dia e 44h/semana.Até 5 dias de trabalho por semana com 2 dias de descanso; limites: 40h (diurna), 35h (noturna), 37,5h (mista); em turnos contínuos, média de 42h em 8 semanas.
Férias e adicionalFérias anuais remuneradas com +1/3.Férias mínimas e bono vacacional obrigatório (mínimo 15 dias + 1 dia por ano de serviço, até limite).
13º salário13º salário obrigatório.Bônus de fim de ano, cujo valor é menor que o salário.
Proteção na maternidade120 dias de licença-maternidade (pode ir a 180 dias no Programa Empresa Cidadã).26 semanas (6 pré + 20 pós), salário integral e estabilidade.
Licença-paternidade5 dias.14 dias. 
Fundo ao término do vínculoFGTS: depósito mensal de 8%.Prestações sociais com garantia e forma de cálculo na rescisão.

Plastilit como exemplo de acolhimento

A Plastilit, com cerca de 800 colaboradores e uma filial em Palmeira, nos Campos Gerais do Paraná, se inscreveu no programa na categoria “Indústria Acolhedora” e recebeu reconhecimento oficial. 

Muitos imigrantes já trabalhavam na empresa antes da participação formal no projeto, mas a integração do programa trouxe mais segurança, pertencimento e comunicação efetiva. Letícia, coordenadora de RH da empresa, destaca o papel de José como multiplicador dentro da fábrica: “Ele ajuda os colegas a entender processos internos, a lidar com documentos e dúvidas do dia a dia. Isso fortalece o acolhimento e ajuda a integrar os migrantes de forma prática e humana.”

Além do suporte operacional, a empresa investe em qualificação e capacitação, divulgando cursos de português da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e treinamentos do Sesi e Fiep. A ideia é que os migrantes não apenas ocupem vagas, mas cresçam profissionalmente, contribuindo para a produtividade e inovação dentro da indústria.

Na prática, isso significa treinar líderes e equipes para receber os migrantes, ajustando processos seletivos, comunicação interna e formas de interação. A capacitação ocorre em forma de curso, e a carga horária é de acordo com o que a indústria propõe. Mais de 300 líderes já participaram das formações. 

Impacto positivo nas indústrias

O programa não beneficia apenas os migrantes, as empresas percebem ganhos significativos em produtividade, clima organizacional e diversidade. A disponibilidade, gratidão e vontade de aprender dos migrantes tornam-nos colaboradores comprometidos e engajados, muitas vezes superando obstáculos como o idioma ou falta de experiência na área.

“Dar oportunidade ao migrante é também um ganho para a indústria. Ele chega motivado, disposto a aprender e contribui diretamente para o desenvolvimento do time e da empresa”, enfatizai Aline.

Assim como José, Danielys também encontrou uma chance de recomeço

Jovem venezuelana está há seis meses em Curitiba (Foto: Arquivo Pessoal)

A história de Danielys Carreño, natural de Tucupita, no estado Delta Amacuro, na Venezuela, se assemelha à de José em alguns aspectos. A jovem de 29 anos veio para o Brasil inicialmente para fazer um trâmite consular rumo aos Estados Unidos, junto com o esposo. 

Mas o visto foi negado e, sem possibilidade de voltar à Venezuela devido à crise política, decidiram permanecer no país.  Primeiro moraram em São Paulo, mas a dificuldade de conseguir emprego e a falta de apoio próximo tornaram a estadia complicada.

“Fiquei em São Paulo apenas quatro meses. Não conseguimos emprego, e a vida lá foi muito difícil. A sensação de estar sozinha, sem parentes por perto, era muito pesada”, conta.

Foi então que familiares em Curitiba os convidaram a se mudar para a capital paranaense.  “Cheguei no dia 5 de fevereiro de 2025, e logo na semana seguinte comecei a trabalhar na indústria Betel. Aqui é mais fácil conseguir emprego, as pessoas são acolhedoras, e a indústria me recebeu muito bem”, relata.

Na indústria, Danielys produz itens descartáveis como tocas, sapatilhas e macacões, atendendo setores industriais e alimentícios. Para ela, o maior desafio foi o idioma e se adaptar a processos industriais que nunca tinha vivenciado.

“No começo, eu não entendia nada do que falavam. Pesquisava os nomes dos equipamentos em casa e praticava para não errar no dia seguinte. Mas as colegas e líderes foram muito pacientes e explicaram tudo devagar. Hoje consigo acompanhar perfeitamente”, afirma.

A presença de outros migrantes na empresa também ajudou na adaptação. Danielys se sentiu acolhida por colegas venezuelanos, cubanos e de outros países latino-americanos, o que tornou o ambiente mais próximo de casa.

“Fico muito feliz quando conheço alguém que fala espanhol. Mesmo que não seja venezuelano, a proximidade cultural facilita muito a adaptação”, conta.

Planos e sonhos para o futuro

Danielys pretende validar seu diploma de Administração, buscar novas oportunidades de trabalho e, eventualmente, abrir seu próprio negócio no Brasil, retomando a experiência que teve como empreendedora junto com o esposo na Venezuela.

“Não penso em trabalhar na indústria para sempre. Quero aprender, crescer e, quem sabe, abrir meu próprio negócio aqui, como já fizemos no passado”, afirma.