Há exatos 146 anos o Brasil comemorava um dos mais importantes avanços rumo à abolição da escravatura no país. É que no dia 28 de setembro de 1871, um dia após ser votada no Senado, a Lei nº 2.040, conhecida também como Lei do Ventre Livre, era promulgada pelo Visconde do Rio Branco, então primeiro-ministro do país.
A partir da Lei nº 2.040, todos os filhos de mulher escrava que nascessem após o dia 28 de setembro de 1871 seriam considerados livres. A ideia era buscar uma transição lenta e gradual do sistema de escravidão para o de mão-de-obra livre, de forma a amenizar o agravamento das tensões sociais que o país atravessava na época e também a atender as exigência da Inglaterra, que pressionava o governo brasileiro para tomar medidas quanto à escravidão.
Na província do Paraná, a notícia da promulgação da lei demorou mais de um mês para chegar, sendo o fato noticiado em 11 de novembro de 1871 pelo jornal Dezenove de Dezembro, o primeiro jornal paranaense, com circulação entre 1854, um ano após o Paraná se emancipar da província São Paulo, e 1899, onze anos depois da proclamação da República.
Em uma edição de 2 de outubro de 1884, inclusive, o órgão do partido liberal fez uma curiosa crônica sobre as celebrações no aniversário de 13 anos da Lei nº 2.040, revelando o entusiasmo da população no tocante ao fim da escravidão no Brasil. Na ocasião, nem mesmo a chuva tempestuosa e apavorante e nem mesmo a lama foram capazes de impedir a vontade resoluta e firme de festejar o grande acontecimento da historia brasileira.
Após o Ceará e o Amazonas, emancipados com uma rapidez incrivel; o Rio Grande do Sul está quasi livre. Emfim, neste meio calmo e quieto do Paraná, a abolição marcha apressadamente. Os espiritos estão enfebrecidos. Libertar o territorio paranaense tornou se, agóra, a palavra de ordem de todos os partidos e a moda do nosso high life. Ninguem aqui se póde considerar verdadeiramente elegante, pschutt, sem haver, pelo menos, dado liberdade a um escravo. Eis o que está felizmente na consciencia de todos. Por isso, o anniversario da lei do ventre livre não podia passar desapercebido, escreveu o jornal paranaense.
Lei é marco simbólico
Em verdade, a Lei do Ventre Livre é mais importante por seu simbolismo do que por seus efeitos práticos. Longe de ser uma legislação revolucionária, permitia aos filhos menores de escravas ficar sob o poder dos senhores de suas mães, que tinham a obrigação de criá-los e tratá-los até os oito anos. Chegando nesta idade, o senhor da mãe ainda poderia utilizar os serviços do menor até ele completar 21 anos.
Ainda assim, como aponta o historiador Boris Fausto no livro Historia do Brasil, a Lei nº 2.040 criou problemas nas relações com as bases de apoio, como os cafeicultores – à época, o café era um dos principais produtos do país, sendo sua produção baseada na utilização da mão-de-obra escrava.
De toda forma, a lei registra as preocupações do período em relação ao sistema escravagista em seus momentos finais, acendendo um debate e provocando uma efervescência política que levaria a aprovação da Lei dos Sexagenários e, mais tarde, a da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, que finalmente aboliria a escravidão.
Confira abaixo, na íntegra, a crônica publicada em 02 de outubro de 1884 pelo Dezenove de Dezembro
FEUILLETON
Ave libertas!
A semana passada terminou com chave de ouro.
Domingo, 28 do corrente, foi um dia verdadeiramente nacional.
Nem as oscillações barometricas nem a chuva tempestuosa e apavorante nem a lama conseguiram impedir a vontade resoluta e firme de festejar o grande acontecimento da historia brasileira.
O vinte oito de setembro assignala uma franca differenciação, no nosso desenvolvimento evolutivo.
Esta data memoranda marca um semi-triumpho obtido, na luta pela emancipação da patria.
Caminhamos, a passos agigantados, para um futuro onde desponta soberbo e coruscante o sol dos novos ideaes scientificos.
Tudo se transforma, neste paiz americano: as idéas e os sentimentos; os homens e as cousas.
O Brasil renova-se a olhos vistos.
A terra dos Andradas enveredou convicta e corajosamente pelos trilhos seguros de uma liberdade ampla e progressiva; assim como uma nação remoçada e pujante de vitalidade.
Decididamente, não tinham razão os pessimistas de affirmar que nós, os brasileiros, eramos um povo decrepito, molle, indolente, incapaz de ousados commettimentos; emfim, uma especie de China occidental.
O obscuro rabiscador desta linhas sempre pensou e affirmou o contrario, desde muitos annos atras.
Não, meus senhores.
Este paiz novo tem muita seiva de vida e é rico de minas de ouro e de esperanças.
Não são só as florestas urberrimas e os animaes gigantescos, que formam o nosso orgulho nacional.
O homem, tambem, na terra de Santa Cruz, possue uma musculatura intellectual forte e vigorosa.
Elle não é, pois, essa figura caturra e rachitica, que os velhos romanticos, cá de casa, costumam de pintar.
Os meus patricios têm, afóra os defeitos, todas as qualidades notaveis, especialmente, os sentimentos generosos da raça latina.
Com effeito. De um extremo a outro, o Imperio ergue se decidido para a resolução pacifica do problema do elemento servil.
Após o Ceará e o Amazonas, emancipados com uma rapidez incrivel; o Rio Grande do Sul está quasi livre.
Emfim, neste meio calmo e quieto do Paraná, a abolição marcha apressadamente.
Os espiritos estão enfebrecidos.
Libertar o territorio paranaense tornou se, agóra, a palavra de ordem de todos os partidos e a moda do nosso high life.
Ninguem aqui se póde considerar verdadeiramente elegante, pschutt, sem haver, pelo menos, dado liberdade a um escravo.
Eis o que está felizmente na consciencia de todos.
Por isso, o anniversario da lei do ventre livre não podia passar desapercebido.
Grandes festejos estavam engatilhados para essa estrepitosa commemoração.
Infelizmente, cumpre dizel-o: a maior parte dos mesmos foram transferidos para o dia seguinte; em consequencia do tempo borrascoso e pessimo, que impedio a realisação daquelles regozijos populares.
Entretanto, correu animada a solemnidade de hontem.
A’s 4 horas da manhã, quando a aurora purpurejava, com o seu rubido crepusculo matutino, a friza acinzentada do oriente distribuio-se uma edição especial do Dezenove de Dezembro, leve, arejada e scintillante.
A pagina de honra era consagrada á memoria do Visconde do Rio Branco, ao Conselheiro Dantas, ao Exm. Sr. Dr. Brazilio Machado e ao Paraná livre.
O resto da folha foi preenchido pela collaboração de muitos illustrados escriptores, que discutiram largamente o tema abolicionista.
Em seguida, ainda ao alvorecer, bandas de musica despertavam alegremente esta cidade, fazendo fluctuar na atmosphera uma onda de harmonias sonoras, vibrantes e rumorosas.
A’ tarde, o partido conservador, desejando exalçar condignamente a memoria do venerando visconde do Rio Branco, reunio-se em casa do Sr. Dr. Tertuliano.
Ao mesmo tempo, espalhou-se o seguinte:
“BOLETIM
Viva o partido conservador!
Honra á memoria do benemerito Visconde do Rio Branco!
Saudação aos habitantes do Paraná!
O partido conservador, iniciador da idéa grandiosa da emancipação neste paiz, revela-se, como sempre o foi, adiantado na conquista civilisadora de ver completamente livre o elemento escravo que tanto atrophia o nosso estado de progresso.
Congrega-se todo nesta cidade aos cidadãos patrioticos que se esforção tão nobremente pelo desenvolvimento da sociedade brazileira; e a todos interessando esta causa tão elevada, ninguem de certo se distanciará, porque todos somos um e um deve ser por todos.
Vivão os estrangeiros residentes na provincia!
Viva o Commercio!
Viva a provincia do Paraná!”
Ao cahir da noute, dirigirão-se, dalli, os manifestantes encorporados e precedidos de uma banda de musica, á residencia do Sr. Dr. Manoel Euphrasio Correia.
O digno chefe, a pedido dos seus co-religionarios, fez entrega de 28 cartas de liberdade.
Depois, foram percorridas algumas ruas por aquelle grupo, que parou, um momento, defronte do palacio presidencial.
Tomou então a palavra o Sr. Dr. Faria Sobrinho, que, em nome dos seus companheiros, comprimentou ao Exm. Sr. Dr. Brazilio Augusto Machado de Oliveira, pelo movimento emancipador, operado no Paraná, sob a actual administração.
S. Ex. agradeceu a honrosa manifestação de apreço e saudou ao partido conservador pela sua cooperação, dentro da esphera da legalidade, na victoria das idéas apregoadas pelo gabinete Dantas.
D’ahi em diante, por ordem expressa do Sr. Dr. presidente da provincia, a banda militar do 3º regimento, a qual estava então tocando retreta, á porta do edificio, acompanhou a tão significativa marche aux flambeaux.
Depois, seguiram todos pela rua da Imperatriz, erguendo, de passagem, calorosos vivas á redacção do Pionier, a colonia estrangeira, aos proprietarios do Grand Hotel, ao Sr. capitão Joaquim Bittencourt e a diversos outros membros conspicuos da phalange conservadora.
Durante o largo trajecto, foram pronunciados muitos discursos importantes relativos ao assumpto.
Prolongou-se ainda, por algumas horas, a passeata, que dissolveu-se, a final, na melhor ordem possivel.
Folgamos em ver a maneira brilhante com que esses distinctos cavalheiros souberam venerar as cinzas do immortal Paranhos.
E nós, que temos constantemente martellado o abolicionismo, na bigorna da tribuna e da imprensa, batemos, por hoje, satisfeiro – o… ponto final.
Curytiba, setembro 29 de 84.
P.B.