
Sábado, dia 15 de abril. Da janela do apartamento onde moro, no Centro de Curitiba, o horizonte se apresenta nebuloso, com o cair de uma garoa persistente. Mais uma manhã cinzenta de outono na capital paranaense, o que não era boa notícia: logo naquele dia a equipe do Bem Paraná tinha uma pauta marcada para o começo da tarde na Cidade Industrial, onde conheceríamos a história de Altevir da Silva, conhecido como o “Galvão Bueno da CIC”, e o mau tempo era um sinal de que as imagens e filmagens talvez não saíssem como o esperado diante da possibilidade cada vez mais óbvia dos boleiros da região resolverem não aparecer no campinho da famosa Praça Central.
Ligo para a estrela do dia, Altevir, que me tranquiliza. “Aqui limpou tudo. Não tem garoa, não. Está tudo aberto”, assegura ele.
Com 68 anos de idade, o locutor é uma figura conhecida no local onde vive e que viu nascer, a Vila Nossa Senhora da Luz. “Eu vim para cá há 58 anos, quando tinha dez anos de idade. Antes a nossa família morava no Juvevê, perto do Hospital São Lucas, mas meu pai precisava de um táxi para trabalhar. Daí ele vendeu a casa que tinha lá, comprou o táxi e nós viemos para cá, numa época onde ainda estavam construindo a Vila”, recorda.
Primeiro conjunto habitacional da cidade e um dos pioneiros do Brasil, inaugurado em novembro de 1966, o empreendimento social pretendia realocar famílias das cerca de 25 ocupações irregulares da capital e prometia desfavelizar a cidade. Por algum tempo, no entanto, serviu mais para tirar os “favelados” (termo utilizado pela imprensa da época para se referir aos então moradores da comunidade) dos principais polos curitibanos do que para desfavelizar a cidade, efetivamente.
“Para conseguir emprego, você não podia falar que era daqui, tinha que falar que morava em outro lugar. Se falasse que morava na Vila Nossa Senhora da Luz, não tinha jeito: não conseguia trabalho. Tudo por causa da discriminação”, recorda Getúlio dos Santos, o Gegê, grande artilheiro da Vila.
Locutor esportivo por um acaso
Para muitos jovens que vivem na Vila Nossa Senhora da Luz, o futebol é um escape, uma esperança de ascensão social. Curiosamente, no entanto, Altevir não foi um desses curitibanos que já nascem ou crescem com uma bola no pé. “Meu pai era muito rígido, não deixava eu ficar no campo jogando bola”, conta ele.
Ao longo da vida, o “Galvão Bueno da CIC” já foi de tudo um pouco. Vendeu picolé quando era criança, trabalhou por décadas como cobrador de ônibus e também de caixa de mercado. Foi numa impressora, contudo, onde começou a descobrir seu dom para a locução: na empresa havia um gravador antigo e ele começou a usar o equipamento por brincadeira. O chefe viu ele gravando, achou a voz bonita e pediu para que Altevir gravasse um material publicitário.
Pouco tempo depois aconteceria a primeira edição do campeonato de futebol da Vila. E foi quando os amigos começaram a pedir para que Altevir narrasse os jogos, dando um clima especial à competição com sua voz e a entonação clássicas dos narradores esportivos.
“O que me trouxe pros jogos aqui foram os amigos. ‘Pô, vai lá narrar os jogos e daí faz os teus anúncios publicitários, vai ficar legal’. O primeiro jogo foi em 1992, entre os Atletas de Cristo e o Grava. Fizeram quatro a um na cabeça. Mas o dia que sofri mesmo foi quando narrei um jogo que terminou 15 a 14. Vinte e nove gols, quase morri de tanto gritar gol”, brinca ele, dizendo ainda que o melhor placar é o 0 a 0. “Porque daí eu não gasto muito a voz, né?!”, justifica Altevir, aos risos.
Para alguns, narrar é um trabalho; para Altevir, é um sonho
A caminho do encontro com o locutor, marcado para 13 horas, vários bairros passam: Água Verde, Portão, Fazendinha. Em todos, o mesmo céu cinzento da manhã no Centro. Ainda assim, Altevir garante, em mensagens por áudio, que está tudo certo na CIC. “Vocês estão vindo?”, pergunta ele, ansioso. “Aqui não está chovendo, está bem claro. A turma está esperando vocês.”
Quando chegamos, enfim, ao campinho da Praça Central, ainda nos deparamos com um céu cinzento e encontramos um campo de futebol vazio e com o meio de campo alagado. Mas a falta de jogadores não é problema para Altevir, que já está posicionado na arquibancada, ao lado de uma caixa de som e empunhando um microfone que usa para anunciar comércios locais (que pagam até R$ 20 para o locutor divulgar suas marcas) e convocar a comunidade para a estreia da tradicional Copa Cinquentinha, cuja abertura está marcada para acontecer no primeiro sábado de maio, dia 6.
A competição, disputada há mais de 30 anos, tem Altevir como narrador desde a sua primeira edição, disputada em 1992. Aliás, não só como narrador: durante as transmissões, o locutor também interpreta o repórter Alfredo, que é quem faz os comentários durante as partidas e quem entrevista os jogadores no meio do campo após os jogos.
“Meu sonho é ainda participar de uma transmissão de rádio, cobrir uma partida profissional”, revela Altevir, que naquele dia que esteve com a reportagem ainda participaria de três bailões na Vila durante a noite. “Ah, eu não sei ficar em casa. Eu curto muito a vida. E quando eu estou narrando o jogo é quando fico aliviado, tranquilo. Essa semana tive consulta na Santa Casa, estou com uma veia entupida e vou ter de fazer cirurgia. Até perguntei pra enfermeira se não teria problema na minha garganta, é a minha primeira preocupação. Ou eu vou morrer narrando ou vou morrer dançando. Ou vou morrer dormindo, para já acordar no céu, né? São três opções.”
Saiba
O locutor e o craque Gegê: dupla inseparável
Até hoje Altevir se recorda do gol mais bonito que narrou no campinho da Praça Central. Foi em 1993, um gol de letra. Mas o momento mais marcante foi outro, ocorrido em 2010, quando seu amigo Getúlio dos Santos, o Gegê, marcou três gols numa final de campeonato, até hoje o único a conseguir tal feito. “Deixei ele até rouco de tanto narrar meus gols”, brinca o artilheiro, que naquele ano foi o grande campeão do torneio com o time do Galos Bar.
Por muito tempo, inclusive, foi Gegê quem agitou a cena futebolística da Vila, coordenando o campeonato dos mais velhos e treinando a moçada da comunidade para disputar campeonatos pelo Brasil e até fora do país. E para onde ia, Getúlio sempre procurava levar junto Altevir, para que os jogos tivessem narração. “Até porque abrilhanta o nosso trabalho ter alguém do lado de fora falando, né? Eu sempre procurei levar ele em tudo que é lugar onde eu marcava jogos: levei ele pro Paraguai, pra Brasília, Santa Catarina… Eu sempre militei no esporte”, conta o artilheiro.
Hoje, porém, as coisas mudaram e é Altevir quem cuida de Gegê, que se aposentou dos gramados e canchas de futebol por causa de problemas de saúde. “Foi o maior craque que eu vi jogar. Fez três gols numa decisão, né? Esse foi o melhor de todos os campeonatos, ninguém vai fazer o que esse velho fez: ele fez o time, jogou, fez os três gols da final e foi o campeão”, exalta o locutor ao recordar a trajetória do amigo inseparável. “Hoje está meio difícil, eu que cuido dele, dou muito força pra ele e pra família dele. Aonde ele vai, no médico, eu vou junto. E vou vivendo a vida assim: dançando, curtindo e cuidando dos amigos”, diz Altevir.