Cada vez que uma mulher ocupa um espaço que antes lhe era negado, há motivo para comemorar – mas, também, para refletir. Por que outras mulheres não tinham ocupado esses espaços antes? No Paraná, muitas mulheres foram as pioneiras em suas devidas posições, mas, mais do que isso, essas mulheres abriram espaço para que outras pudessem ‘chegar’ também. Neste 8 de março, contamos essas histórias para que elas não sejam mais a exceção.
Aos 62 anos, Maria Alice Souza continua escrevendo sua própria história, desta vez na Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran). A paranaense foi a primeira mulher na história do Brasil a se tornar superintendente da Polícia Rodoviária no Paraná, em 2005. Anos depois, em 2011, ela se tornou a primeira diretora-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF).
A verdade é que Maria Alice foi pioneira muito antes disso. Em um tempo em que instituições policiais eram predominantemente masculinas, Maria e outras cinco mulheres foram as primeiras a entrarem na PRF por um concurso público. Ela conta que, na época, demoraram para chamá-las para os determinados cargos, já que era estranho ter mulheres no posto. “Fiquei quase dois anos para ser chamada. Nós tivemos que entrar com ação judicial para poder entrar. E, no início, foi muito difícil, com muito preconceito. Eu sempre fui um pouco ousada, então como eu queria que eles me aceitassem, eu fui fazer um curso de motociclista”, contou.
Com o curso, Maria foi uma das primeiras mulheres que conseguiu sair da ala dos escritórios e entrar em ação nas rodovias do Paraná. Com o tempo, ela conta, os seus colegas começaram a respeitá-la e até protegê-la, mas demorou para que isso acontecesse. Quando se tornou superintendente do Paraná, a resistência também foi grande, mas o seu trabalho calou todas as críticas.
“Naquela época não tinha muito essa coisa do policial ter uma visão de proteger a sociedade, por exemplo. Depois eu implantei na PRF a questão dos direitos humanos. Aí no Paraná, quando eu era superintendente, foi a primeira do Brasil que colocou ações voltadas para o combate à exploração sexual infantil. A gente fazia ações, tanto educativas como depois foi melhorando o negócio, para aquela situação que tem até hoje no Porto de Paranaguá, por exemplo”, disse, se referindo aos problemas de exploração sexual infantil nos portos do Brasil, inclusive no Paraná.
Já como diretora-geral da PRF, seu trabalho em prol da instituição foi grande e abriu espaço para outras mulheres. Antes, os postos da PRF não tinham banheiro para mulheres, nem dormitórios, e até os uniformes não eram pensados para o corpo das mulheres. Tudo isso mudou com o trabalho de Maria Alice. Mas até para ela o convite para se tornar a diretora-geral foi uma grande surpresa.
Mulheres no pódio
Outra mulher que dominou um espaço predominantemente masculino foi a paranaense Rosilete dos Santos. A lutadora de boxe foi a primeira do Brasil a carregar o cinturão mundial de boxe.
Aos 23 anos, Rosilete não imaginava que sua paixão por treinar se transformaria em uma carreira de sucesso. No começo, ela só queria aprender, treinar, e se desafiar fisicamente. “Eu sempre fui muito dedicada, e o treinador percebeu isso. A cada dia, minha técnica melhorava, e ele me incentivou a lutar,” lembra Rosilete.
A primeira grande conquista veio em 2008, quando ela se tornou a primeira brasileira a conquistar um cinturão. Mas o momento mais marcante de sua carreira aconteceu em 2011, quando ela alcançou o tão sonhado título mundial pela WIBA, a maior entidade de boxe feminino. A conquista não só a consagrou como a melhor do mundo, mas também abriu caminho para que mais mulheres se aproximassem do esporte.
Antes de se tornar a campeã mundial de boxe, no entanto, Rosilete realizou um de seus maiores sonhos: se tornar mãe. Pouco antes do seu primeiro cinturão, em 2008, ela teve sua filha. Quando decidiu optar pela maternidade, a atleta até achou que seria o fim de sua carreira, mas o destino guardava outra coisa. Quando viajou, a equipe da competição nem sabia que sua recém nascida iria com ela, mas foi exatamente desse jeito. Aos 10 meses de idade, sua filha e seu marido, Macaris, acompanharam a boxeadora no seu primeiro título.
“Hoje, vejo muitas mulheres se interessando pelo boxe, seja para se manterem em forma, seja para defesa pessoal. O boxe empodera as mulheres e as fortalece mentalmente,” diz Rosilete, que também se dedica a projetos de incentivo à prática de esportes e lutas entre mulheres. Em 2013, após sua aposentadoria, ela foi reconhecida com diversos títulos e honrarias, incluindo o título de Cidadã Honorária de Curitiba e São José dos Pinhais, onde mora atualmente.
Na educação, na ciência e onde quiserem
Embora, aparentemente, o campo da educação seja permeado por mulheres. A verdade é que foi demorado para que elas conseguissem ensinar, pesquisar e ocupar os espaços de direção nas universidades.
Amanda Crispim é a primeira mulher negra a ocupar uma vaga no corpo docente do Departamento de Letras da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Desde sua adolescência, Amanda sabia que queria ser professora. Inicialmente interessada em literatura, ela não sabia muito bem onde esse interesse a levaria. Ao decidir o vestibular, foi uma professora de Língua Portuguesa quem a direcionou para o curso de Letras, onde Amanda encontrou seu verdadeiro caminho.
A paixão pela literatura negra e a busca por entender as vivências de mulheres negras moldaram a carreira acadêmica de Amanda. “No mestrado, comecei a estudar Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus e Geni Guimarães. Já no doutorado, me aprofundei na poesia de Carolina e Firmina.”, contou.
Ser mulher negra em um campo predominantemente branco, no entanto, nunca foi fácil. Amanda enfrentou muitos desafios, desde a solidão no ambiente acadêmico até a discriminação sutil. “Durante toda minha trajetória, fui a única mulher negra nos lugares que frequentei. Isso é uma forma de violência, de racismo. Ser a única em espaços acadêmicos me acompanhou desde sempre”, diz.
“Passar no concurso e ser professora universitária foi a realização de um sonho pessoal, mas também coletivo. Eu sei que muitas mulheres vieram antes de mim, abriram caminho para que eu estivesse aqui hoje”, disse. No entanto, ela reflete sobre a demora para que essas mudanças aconteçam. “É revoltante pensar que só em 2023 tivemos uma professora negra no corpo docente. A universidade é uma instituição antiga, e o departamento de Letras tem muitos anos. Por que isso não aconteceu antes? Essa reflexão é importante”, pontua.
Em outra universidade, desta vez na Positivo, em Curitiba, Andréia Caldani se tornou, em 2025, a primeira reitora da instituição. Formada em Direito, foi na educação que Andréia encontrou o propósito da sua vida. “Eu sempre gostei de trabalhar com pessoas e, quando fui convidada a ministrar algumas aulas, percebi que havia encontrado minha verdadeira vocação”, conta. A partir daquele momento, ela se dedicou à educação de forma intensa.
Até se tornar reitora, Andréia, assim como as outras entrevistadas da reportagem, teve que “provar” o seu valor em espaços que, antes, só tinham homens. “É difícil, sim, ter que provar sua competência em um mundo que, muitas vezes, ainda é dominado por homens. Às vezes, a gente entra em uma sala e se sente desvalorizada, mas é importante mostrar que estamos ali pela nossa competência e capacidade”, pontuou.
Foi depois de um período sabático que Andréia foi convidada a se tornar reitora da Universidade Positivo, que está no Cruzeiro do Sul Educacional. “Ser a primeira mulher reitora da Universidade Positiva é uma grande honra. Essa conquista não é apenas minha, é de todas as mulheres que vieram antes de mim e que acreditam na educação como um caminho de transformação”, disse.
E falando em educação, não tem como não falar das pesquisadoras deste Brasil. Claudia Nunes foi uma das fundadoras da FioCruz no Paraná. No meio de quatro homens, ela foi a única pesquisadora presente desde o início da instituição regional.
Mas, para Claudia, o caminho não foi sem obstáculos. A jornada de conciliar a maternidade e a pesquisa foi, e ainda é, um desafio constante para ela e para muitas mulheres na ciência.
“Ser a única mulher entre os fundadores da FioCruz Paraná foi, sem dúvida, um desafio. Mas, ao mesmo tempo, me fortaleceu. Tive que aprender a lutar por meu espaço, muitas vezes quebrando barreiras, e até hoje tento inspirar outras mulheres a seguirem o caminho da ciência”, comenta Claudia. Ela lembra que, além das dificuldades naturais de ser mulher em um ambiente majoritariamente masculino, a maternidade trouxe desafios únicos, especialmente no campo da pesquisa, onde o tempo e a dedicação exigem um compromisso ainda maior.
Além das questões práticas, Claudia também comenta sobre a falta de reconhecimento que, muitas vezes, acompanha as mulheres na ciência. “Existem muitos desafios estruturais e sociais que dificultam a presença feminina nas ciências. A sociedade ainda precisa entender que a maternidade não é um obstáculo, mas uma fase natural da vida de qualquer mulher. Isso não diminui em nada a nossa capacidade de contribuir para o avanço da ciência”, afirma.
Claudia Nunes, junto aos outros fundadores da Fio Cruz Paraná, foi responsável por estabelecer a instituição como um importante centro de referência em saúde pública, pesquisa científica e formação de profissionais de saúde. “Durante a pandemia, a Fio Cruz Paraná teve um papel crucial no apoio à gestão de crises sanitárias. Desenvolvemos novas tecnologias para testes diagnósticos, oferecemos suporte a hospitais e trabalhamos lado a lado com outras instituições para garantir que a população tivesse acesso a cuidados médicos e informações precisas”, explica Claudia.
Apesar das dificuldades enfrentadas ao longo da sua carreira, a pesquisadora se mantém otimista quanto ao futuro da Fio Cruz no Paraná e, principalmente, quanto ao futuro feminino na ciência. “Vamos continuar a investir em educação e pesquisa para formar novos profissionais e, assim, garantir que a saúde pública no Paraná continue a evoluir. Mulheres cientistas precisam de mais visibilidade e reconhecimento, e precisamos garantir que as futuras gerações de mulheres tenham as mesmas oportunidades que os homens”, afirma.
As primeiras, mas não as últimas
Com quase 60 anos, o IPPUC (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba) nunca foi presidido por uma mulher. Mas isso mudou com a chegada de Ana Jayme, neste ano de 2025.
Formada como Arquiteta e Urbanista, ainda na faculdade, ela teve a oportunidade de estagiar no IPPUC, em Curitiba, uma experiência que aumentou sua paixão pelo planejamento da cidade. “Curitiba sempre teve essa história rica de planejamento urbano, e eu queria ser parte disso”,disse.
Durante os anos como urbanista, Ana aprendeu a se posicionar. “Eu sempre costumo dizer que as barreiras existem. Desde a escola, onde se criam estereótipos de que a mulher não pode ser boa em tudo”, explica. Ao longo de sua carreira, ela enfrentou o desafio de ser uma das poucas mulheres em ambientes predominantemente masculinos, especialmente no campo da administração financeira e do planejamento.
Mas Ana sempre buscou ser muito bem preparada, com uma formação sólida, para não ser questionada. “Eu aprendi a ser pragmática e assertiva. Se você tem conteúdo, você consegue romper essas barreiras”, afirmou.
Em outra área, dessa vez na comunicação, outra mulher no Paraná se tornou pioneira. Aline Reis se tornou a primeira mulher negra a assumir a presidência do Sindicato dos Jornalistas do Paraná (Sindjor-PR). Aline começou no jornalismo de forma diferente do que é o comum. Antes da universidade, ela foi conhecer um jornal e se encantou pelo trabalho de jornalistas.
Na época, não eram só jornalistas que escreviam em redações. Era comum que pessoas com um “dom” pela escrita estivessem nesses ambientes. E foi assim que Aline se encantou pela profissão.
Depois de anos na carreira, em agências, redações e outras áreas da comunicação, Aline foi a primeira e única jornalista negra do Paraná ser indicada ao prêmio de Jornalistas Negros Mais Admirados da Região Sul. Nesta primeira edição, ela venceu. Para Aline, foi até meio cômico, porque já que ela era a única, com certeza o prêmio seria dela. Na segunda edição, outros jornalistas receberam a indicação, mas foi Aline quem recebeu o prêmio mais uma vez.
Hoje, como primeira presidente negra do SindiJor-PR, Aline comenta do misto de sensações. ‘Não é satisfatório para mim ouvir que sou a primeira mulher negra nessa presidência. Com certeza, houve outras mulheres tão ou mais competentes que eu para o cargo e que não conseguiram chegar até aqui”, disse.
Para o Dia Internacional das Mulheres, mais do que flores e homenagens, Aline quer mudanças. “É um dia de reflexão e mudança”, afirma. “Nós gostamos de flores, claro, mas esse é um dia para refletirmos sobre as transformações que ainda precisam acontecer, para que ocupemos os espaços que nos foram historicamente negados. É um dia de luta”, finalizou.
Neste 8 de março, o Bem Paraná decidiu ouvir a história dessas mulheres que desbravaram espaços. É dia de comemorar, porque cada mulher que rompe uma barreira pavimenta o caminho para as próximas. E talvez um dia, ao olharmos para trás, vejamos que o verdadeiro feito não foi ser a primeira, mas garantir que nunca mais haja uma última.
Outras pioneiras no Paraná
Enedina Alves Marques: A primeira engenheira negra formada no Brasil, responsável pelo desenvolvimento do Plano Hidrelétrico do Paraná.
Maria Olímpia Carneiro Mochel: A primeira vereadora de Curitiba.
Maria Aparecida Borghetti: A primeira mulher a se tornar Governadora do Paraná, em 2018.
Audilene Rosa de Paula Dias Rocha: A primeira comandante da Polícia Militar do Paraná, em 2018 também.
Helena Kolody: Considerada uma das maiores representantes literárias do Paraná, foi a primeira mulher a escrever e publicar haicais no Brasil.