Franklin de Freitas

O músico curitibano Odivaldo Carlos da Silva, o Neno, participou recentemente de gravações para uma campanha da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), do Museu do Holocausto de Curitiba e da Confederação Israelita do Brasil (CONIB). A iniciativa, chamada “Contar para Viver, Viver para Contar”, será lançada na próxima sexta-feira (27/1), quando é celebrado o Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto, e reunirá sobreviventes do genocídio nazista e vítimas de violência e intolerância nos dias atuais, que darão depoimentos sobre o que sofreram para que essa memória jamais se perca ou fique esquecida. No site www.contarparaviver.com.br, as pessoas que quiserem ainda poderão registrar seus próprios relatos.

No caso de Neno, o convite para participar da campanha surgiu após um episódio recente. No dia 22 de novembro do ano passado o integrante da icônica banda de reggae Djambi (conhecida pelo clássico “Barca pra Ilha”) voltava para sua casa, no Centro de Curitiba, após almoçar. Quando caminhava pela Rua Doutor Faivre, no entanto, ele foi repentina e brutalmente atacado por um cachorro e o seu dono, identificado como Paulo Cezar Bezerra da Silva, que estava armado com um cassetete. Enquanto era mordido e espancado com golpes no rosto (quebrou o maxilar), no olho (esquerdo, que sofreu um derrame) e nas costas (que até hoje, cerca de dois meses depois, ainda doem), o músico também era xingado de coisas como “macaco” e “negro sujo” e ainda ouviu o agressor dizer, numa espécie de justificativa dada às outras pessoas que testemunhavam as agressões, coisas como “morador de rua merece morrer”.

A agressão recente foi a mais virulenta que Neno já sofreu. Não foi, entretanto, a primeira (e nem mesmo a última) vez em que o artista teve de encarar o racismo.

“Quando eu tinha uns 14 anos de idade arrumei meu segundo emprego. Já tinha trabalhado espalhando panfletos do supermercado e depois consegui um no Instituto de Assistência ao Menor, lá no Batel. Eu era office boy e trabalhava na tesouraria e gostava muito da forma como o pessoal me tratava. Um dia pedi uma rosa pra minha mãe, ela tinha uma rosa de prata, de enfeite. Disse que precisava dar de presente para uma moça de lá e ela me entregou a rosa. Aí eu fui lá e dei a rosa pra mulher e ela começou a gritar, perguntar onde eu tinha roubado aquilo. Eu disse que aquela rosa era da minha mãe, que tinha me dado para eu entregar de presente para ela, dar para ela, mas ainda assim ela não acreditou”, relata Neno.

Mais recentemente, há cerca de um mês atrás, o curitibano estava indo para o Hospital Evangélico, onde está sendo atendido para se recuperar plenamente das agressões sofridas em novembro, quando voltou a ser atacado na rua, em plena luz do dia. “Eu estava indo fazer a consulta no hospital, desci do ônibus e estava indo sozinho. Daí vieram dois caras do outro lado da rua me xingando. Eu comecei a pensar ‘será que tá acontecendo de novo?’ Eles falavam do meu cabelo, perguntavam das minhas tranças. Daí eu tentei procurar uma outra rua que tivesse mais gente e comecei a andar mais rápido.”

Agora, no entanto, a família está trabalhando para fazer de tantos limões uma limonada, aproveitando a própria dor para evitar que outros sofram, como destaca Lucimara Aparecida de Almeida, esposa de Neno. “Eu acho que a gente vai conseguir extrair o melhor desse limão. Esperamos que isso tudo que aconteceu sirva para aprofundar mudanças, usar de exemplo para melhorarmos o enfrentamento ao racismo. Queremos evitar que isso se repita e para isso desejamos mudanças verdadeiras”.

Uma luta para se recuperar: “A música tem me salvado”

A veia musical de Neno vem da família. Ainda jovem, ele começou a aprender a tocar violão com o próprio pai, que era palhaço de circo e músico também. Nos últimos tempos, entretanto, fazer aquilo que ele mais gosta – e que também é e sempre foi o seu sustento – tem sido difícil, por causa das sequelas que persistem após o ataque covarde no Centro de Curitiba. Na boca do cantor, por exemplo, ainda estão os pontos que ele teve de tomar devido aos cortes causados pelos golpes de cassetete. Ele também relata ter tido dificuldades para compor e que não consegue performar por muito tempo, que logo sua cabeça começa a doer. Além disso tudo, há ainda o medo, a dificuldade em conseguir sair de casa.

“Ah, o temor ficou bastante, sabe? O temor ficou bastante e eu tenho ficado muito em casa. Tento ficar em casa o máximo possível, o máximo possível”, diz Neno, explicando que seu maior temor ainda é em voltar para a região central da capital paranaense, algo que conseguiu fazer recentemente, no entanto. “Eu não queria ir, estava dando dessculpa, mas resolvemos ir e fomos. Tem de encarar, né? Cada pessoa que vem eu penso que vai acontecer de novo, tenho medo de ficar lá no Centro. A música é o que tem me salvado, na verdade, mas eu ainda não tenho conseguido compor como antes”, afirma o artista.

Cartilha contra o racismo e retorno aos palcos

Logo após a agressão contra Neno em novembro, a Polícia Militar foi acionado e encaminhou a vítima para o hospital e o agressor para a delegacia. Um boletim de ocorrência foi registrado e o agressor foi solto no mesmo dia. E quando olhou o B.O., Lucimara percebeu que o registro não falava ou fazia qualquer menção ao racismo ou à injúria racial e que a ocorrência fora anotada como lesão corporal leve. Teve, então, de lutar (e muito) para conseguir retificar o documento.

“Eles fizeram como se tivesse acontecido uma briga banal e a vítima tivesse sofrido agressões leves, mas ele estava arrebentado. Também marcaram uma audiência de conciliação para o dia vinte de março. E a agressão aconteceu dia 20 de novembro. Eu falei ‘não, tem de fazer o B.O. certo'”, recorda Lucimara, que foi em várias delegacias e chegou a ser desencorajada na inteção de fazer constar no B.O. o crime de racismo ou injúria racial, antes de conseguir (após muita insistência) fazer o complemento ao boletim de ocorrência. “Agora eu penso em fazer uma cartilha para ensinar como denunciar [o racismo], explicar a importância do boletim de ocorrência e o que precisa ir nele. Também é importante acionar a Secretaria de Igualdade Racial. Depois que fizemos isso, tudo andou mais rápido”.

Ao mesmo tempo, Neno se prepara para a volta aos palcos. Entre o final de fevereiro e o começo de março, por exemplo, ele e Lucimara pretendem fazer uma feijoada na casa do casal, no Sítio Cercado, reunindo os amigos para um dia de muita música. Na sequência, a ideia é levar Neno de volta aos palcos, com um show que deve acontecer ainda no primeiro semestre deste ano, possivelmente no Teatro da Reitoria da UFPR. “Estamos convidando artistas envolvidos com a causa racial e a ideia é apresentar músicas que também sejam voltada para isso”, explica Lucimara.