A Constituição da República Federativa do Brasil, logo em seu artigo 5º, dispõe acerca dos direitos e deveres individuais e coletivos, garantindo que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações e declarando como sendo livre a locomoção no território nacional em tempo de paz. Mas quase 30 anos depois da promulgação da Constituição, o Brasil não consegue cumprir totalmente com o que sua Carta Magna determina. 

Mesmo Curitiba, considerada cidade modelo, exemplo de civilidade, ainda não atingiu o ideal, ainda mais para a figura feminina de periferia. É o que mostra o estudo Por Onde Elas Andam, de autoria da socióloga Stefânia Poeta Pontes e que discute a mobilidade de mães moradoras do Rio Bonito, um loteamento periférico pertencente ao Bairro Campo de Santana.

No estudo, fica claro as dificuldades encontradas pelas mulheres, especialmente de comunidades de baixa renda, para se locomoverem com tranquilidade. Seja por causa das calçadas inadequadas, do transporte coletivo lotado ou da violência que ainda sofrem as mulheres. E, ainda que a pesquisa seja localizada, serve de retrato para outras regiões da cidade.

Para conseguir realizar a análise qualitativa sobre a mobilidade das mulheres, em especial das mães, dentro da cidade, Stefânia realizou entrevistas com mulheres que residem e têm seus filhos estudando em uma creche municipal no loteamento. Em sua dissertação, a socióloga aponta que os relatos mostram o quanto pode ser complicado fazer alguns deslocamentos, e que estas dificuldades, permeadas principalmente pelas questões de classe e de gênero, acabam por restringir a mobilidade das mulheres.

Alguns, inclusive, podem imaginar que isso seria uma situação restrita aos bairros periféricos, foco da análise de Stefânia. A pesquisadora, porém, acredita que mesmo nas regiões mais nobres as mulheres sofram com a falta de mobilidade. Acredito que a situação se repita por toda Curitiba. Levar filho no ônibus, por exemplo, é uma dificuldade. Você não consegue assento, tem superlotação. Das entrevistadas no meu estudo, apenas uma afirmou nunca ter sofrido algum abuso. Todas as outras relataram no mínimo olhares abusivo, finaliza.


Por medo, elas não saem à noite, diz pesquisadora

Bem Paraná — Quais são os maiores empecilhos para a garantia de uma liberdade plena para as mulheres na cidade?
Stefânia Pontes — São vários os fatores que não se restringem apenas ao espaço público, com problemas das vias e do transporte coletivo. No espaço privado, elas costumam ser as responsáveis pelo cuidado do lar e das crianças e acabam tendo pouco tempo para elas próprias, pois ainda existe a compreensão em nossa sociedade que a mulher deve ser esta responsável, como algo natural e instintivo. Também acabam tendo de buscar trabalho próximos de casa, independentemente se gostariam de trabalhar naquela área ou não, pois o horário da creche também é um limitador. O maior empecilho, porém, é o medo. Elas não saem à noite. Agora, uma coisa interessante é que se precisar sair por necessidade, elas saem mesmo com medo. Já por lazer, não.

BP — Como, afinal, resolver esse problema, superar as questões de gênero e garantir uma cidade para todos, democrática de fato?
Stefânia — Acredito que começa com a educação. O fato das questões de gênero terem sido retiradas do currículo é um problema, porque a educação amplia a possibilidade das pessoas refletirem sobre condições que lhes parecem naturais, mas não são. Há restrição grande por parte de alguns grupos que acreditam que a mulher já tem um papel definido, deve cuidar dos filhos, e aí entra também a questão LGBT que alguns ficam com medo. Eu sou professora e sempre trago isso (discussão de gênero) para os meus alunos. E não é doutrinação, é estudo científico. A naturalização de gênero é uma questão social, não biológica.

BP — Quais as principais diferenças da mulher da periferia, analisada em seu estudo, para aquela mulher que mora em bairros, digamos, mais nobres?
Stefânia — Meu estudo, infelizmente, não abordou isso, é algo que queria ter feito. Mas me parece que a principal diferença é o carro, a praticidade e o conforto que ele traz. Eu, por exemplo, vou trabalhar de carro e levo 10 minutos. Se fosse de ônibus, levaria 40. Então o veículo realmente facilita muito, e há ainda a questão de que os equipamentos públicos, o acesso, é bem mais fácil para quem mora em bairros considerados mais nobres.

BP — Por que a mobilidade da mulher é menor do que a do homem?
Stefânia — É um processo histórico de divisão dos espaços em público e privado, onde prevalece o pensamento do homem sobre como os lugares devem ser. Então a mobilidade não é pensada para atender as necessidades diversas das pessoas, mas somente um grupo. Podemos perceber isso com o transporte público, cujos horários atendem os caminhos e os horários que levam as pessoas para o trabalho e para casa, num movimento pendular, em que o atendimento é reduzido ou não existe em outros horários. É como se as mulheres, principalmente as mães, não pertencessem àquele espaço. Na pesquisa, inclusive, isso é algo notável, pois quando o homem resolvia ajudar em casa era fazendo algo externo, como limpar a calçada, enquanto a mulher costuma ficar mais restrita aos espaços internos. Além disso, o corpo da mulher é extremamente sexualizado como objeto de desejo masculino, o que também limita a mobilidade dela, uma vez que o medo é sempre citado na fala delas.

BP — Estamos no meio de uma eleição municipal. Acredita que a disputa possa trazer avanços?
Stefânia — Acho que não. As mudanças não vão vir pelo cenário eleitoral, mas pela luta das mulheres, uma mudança de baixo para cima. Temos hoje a Câmara dos Deputados mais conservadora da história, então não há espaço para essa discussão, ainda mais com outras coisas caindo na cabeça da gente, como a PEC 241 e a reforma do Ensino Médio.


Rápida

Inspiração
O estudo, conta Stefânia, nasceu de uma espécie de encontro da sua experiência como acadêmica de Ciências Sociais com a experiência prática na Ambiens Sociedade Cooperativa, que desenvolve projetos relacionados ao planejamento urbano, rural e regional. Na faculdade me interessei por questão de gênero. Depois vim trabalhar na Ambiens e senti falta da questão de gênero nas discussões. Então a dissertação acabou vindo como uma junção da discussão da cidade com a discussão de gênero, explica a pesquisadora.