
Em 9 de janeiro de 1963, duas cientistas, a batracologista (especialista em anfíbios) Doris Cochran e a entomologista Doris Blake, do Smithsonian National Museum of Natural History (EUA), anotaram no diário de campo: tinham capturado dois sapos em “um grande campo cheio de cupinzeiros e tufos de grama mastigados por vacas”, nos arredores de Tarumã, então uma área rural de Curitiba, no Paraná.
À época, a paisagem era de riachos, campos abertos e áreas alagadas. Hoje, o mesmo Tarumã é um bairro densamente urbanizado, com ruas asfaltadas, prédios e comércio -um ambiente onde não haveria qualquer chance de encontrar o pequeno anfíbio que elas coletaram naquela manhã.
O achado em Curitiba revelou uma peça inesperada no quebra-cabeça da biodiversidade atlântica. Até pouco tempo, acreditava-se que o gênero Dryadobates tivesse apenas uma espécie na mata atlântica. Sem esse exemplar no Smithsonian, nunca saberíamos que a D. erythropus existiu. Hoje, com o avanço da análise museômica (a partir do DNA dos espécimes depositados em museus) e da bioacústica, já há pelo menos 12, algumas ainda aguardando descrição. Das 7 já descritas, 4 são consideradas extintas, incluindo o D. erythropus.
Durante décadas, estudiosos suspeitaram que poderia ter havido um engano. O exemplar, catalogado como USNM 148487 (o número de registro do United States National Museum, hoje Smithsonian), poderia ter sido mal identificado ou ter vindo de outro lugar. Alguns chegaram a sugerir que Cochran teria confundido o registro com outro sapo abundante da região. Afinal, a localidade registrada ficava 550 quilômetros ao sul do ponto mais próximo conhecido para o grupo dos chamados “sapos-foguetinhos” (gênero Dryadobates), que recebem esse nome pelos saltos “explosivos”, sendo muito difíceis de capturar.
A dúvida só começou a ser esclarecida quando o batracologista Taran Grant, da USP, revisou o material no Smithsonian. Ele não encontrou nada que desabonasse o relato das duas cientistas. Pelo contrário: o exemplar estava de fato ali, etiquetado e acompanhado das anotações de Cochran. Não havia sinal de erro.
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“Bati o olho e reconheci de imediato que ele pertencia a esse grupo de sapos-foguetinhos”, diz Grant.
O problema é que o animal, um macho de apenas 13,5 mm, estava em péssimo estado: ressecado, quebradiço, coberto de grãos de areia. Tudo indica que morreu dentro do saco de coleta, antes mesmo de ser preservado. Tentativas recentes de extrair DNA fracassaram. Ainda assim, a morfologia bastou para classificá-lo e batizar a espécie como Dryadobates erythropus. Esse único indivíduo é o holótipo -o exemplar de referência usado para descrever formalmente o bicho.
“É sempre difícil, na ciência, comprovar extinção, porque trabalhamos com ausência de evidência, que nunca é evidência de ausência. Mas quando você tem uma espécie que era comum, que vocalizava o tempo todo, e de repente desaparece por décadas sem nenhum registro, é inevitável concluir que ela realmente não existe mais”, explica o cientista.
Novo sapo: “erythropus” vem do grego “pé vermelho”
No artigo, publicado no mês passado no periódico Zootaxa, Grant e Paulo Durães Pereira Pinheiro, do Smithsonian, descrevem os traços que distinguem o bicho: corpo minúsculo, dorso amarronzado, ausência de faixa dorsolateral clara e uma faixa oblíqua pálida, bem definida, correndo da virilha até a borda posterior do olho. O epíteto “erythropus” vem do grego “pé vermelho” e homenageia o apelido dado a trabalhadores rurais do Paraná, conhecidos como “pés-vermelhos”.
Se vivo, o Dryadobates erythropus provavelmente teria hábitos semelhantes aos de seus parentes próximos, que vivem sob a serrapilheira úmida, perto de riachos, a 50 ou 100 metros da água. O comportamento reprodutivo é curioso: em vez de agarrar a fêmea à força, como faz a maioria dos anuros, no abraço conhecido como “amplexo”, eles usam uma glândula no dedo da pata dianteira para acariciar a região do pescoço delas, liberando feromônios que estimulam a cópula. “É um gesto delicado, quase um carinho no gogó”, diz o batracologista.
O cuidado parental também chama a atenção: os machos permanecem junto aos ovos, umedecendo-os com urina, e depois carregando os girinos nas costas até um curso d’água. Essa dedicação lhes rendeu o apelido em inglês de “nurse frogs”, rãs-enfermeiras.
Descoberta em Curitiba sugere outras espécies intermediárias
Para Grant, a descoberta no bairro Tarumã sugere a existência de outras espécies intermediárias entre o Rio de Janeiro e o Paraná, desaparecidas antes mesmo de serem registradas. “Dado que os fatores que levaram a essas extinções recentes ainda não estão claros, é imperativo que sejam coletadas informações sobre a história natural, distribuição e abundância local das populações existentes de Dryadobates, a fim de identificar e mitigar as ameaças à sua sobrevivência.”