As vozes que fizeram e ainda fazem da dublagem brasileira uma das melhores do mundo começam a ganhar um rosto. Com a ajuda das redes sociais, dubladores como o paranaense Charles Emanuel, intérprete de personagens como Rony Weasley, da série Harry Potter, e do protagonista do desenho Ben 10, começam a ganhar evidência. Não à toa, são presença garantida em eventos voltados para o público Geek, como o Shinobi e o GeekOn, de Curitiba.

No Brasil, a historia da dublagem começou a ser escrita ainda no século passado, mais precisamente em 1938, quando foi feita a primeira dublagem no país, do filme Branca de Neve e os Sete Anões, dos estúdios de Walt Disney. Em 1957, o produtor de cinema Herbert Richers trouxe o conceito de versão brasileira para a série Zorro, também da Disney. Já em 1962, Jânio Quadros, o presidente que prometia varrer a corrupção, assinou uma lei que tornou obrigatória a dublagem a todos os filmes e desenhos animados a serem transmitidos na TV aberta, o que impulsionou o setor.

Cinquenta anos depois, muita coisa já mudou, mas a demanda continua em alta. Reflexo da crescente produção audiovisual, que é resultado das demandas da internet, a disseminação de TVs por assinatura e o número cada vez maior de jogos de videogame dublados.

Nesse cenário, Charles Emanuel pode ser considerado um personagem privilegiado. Nascido em Piraquara, na Região Metropolitana de Curitiba, cresceu no Rio de Janeiro, cidade para onde se mudou aos dois anos de idade juntamente com a avó, Tereza Anquetin, a quem ele chama de mãe (foi quem o criou). Ela, que se aposentou no ano passado, fez parte das primeiras gerações de dubladores do país, após anos trabalhando no teatro paranaense.

Tal mudança acabou sendo determinante para sua carreira, uma vez que a Cidade Maravilhosa, juntamente com São Paulo, concentra a maior parte dos estúdios e dos trabalhos de dublagem, principalmente no que diz respeito à produção cinematográfica. Hoje com 26 anos, o piraquarense trabalha há mais de 18 com dublagem, o que representa uma vida inteira no meio.

Eu me divirto muito dublando. É aquela coisa: ‘trabalhe com o que você ama e não vai ter de trabalhar um dia na sua vida’, afirma Charles, que anos atrás desistiu daquele que é o sonho de muita gente — se tornar um ator de televisão famoso — para se dedicar exclusivamente à dublagem. Não me vejo fazendo outra coisa, complementa.

Início foi quase sem querer; hoje, ele é o Ben 10

Bem Paraná — Você saiu com quantos anos do Paraná? Como se deu o seu primeiro contato com o mundo da dublagem?
Charles Emanuel — Eu nasci em Piraquara. Minha mãe (Tereza Anquetin) sempre trabalhou em teatro aí no Paraná. Quando eu era pequeno, ela veio para o Rio de Janeiro. Inclusive, foi uma das atrizes que inauguraram a TV Globo. Como eu tenho um problema respiratório e nossa família era muito humilde, então eu não tinha tantos cuidados, ela me trouxe para cá (Rio de Janeiro) quando eu tinha dois anos. Quatro anos depois eu tive meu primeiro contato com a dublagem.
O diretor Silvio Navas (conhecido pelas vozes de Mumm-Ra, do Thundercats, Darth Vader, da trilogia original de Star Wars, entre outros) trabalhava com a minha mãe e um dia ela me levou para o estúdio. Eu sempre aguardava na técnica e naquele dia um garoto que ia dublar tinha faltado. Então ele pediu para eu quebrar um galho. Eu demorei até pegar o jeito, mas logo comecei a fazer curso de dublagem. Com sete anos já estava dublando mesmo e depois também fiz curso de teatro, porque a partir dos 16 anos você precisa ter a DRT para dublar. Isso me ajudou muito a lidar com a timidez e também na parte de interpretação.

BP — Quais os personagens que você já dublou que considera mais marcantes?
CE — Rony Weasley, do Harry Potter; Mutano, do Jovens Titãs; o Ben 10 — eu prefiro ele criança —, mas num geral sempre fez sucesso; Near, do Death Note; Tenma de Pégaso, do Cavaleiros do Zodíaco; Rigby, do Apenas um Show. No Hora da Aventura eu faço o BMO, que é o gameboy verde. Outro bem marcante foi o Veigas, do jogo Grand Chase. A seleção foi feita pela internet, por meio de votação. Cinco dubladores estavam concorrendo, acima do normal, que é três disputarem. Na versão em coreano, eles tinham usado uma mulher, e não gostaram. No americano, foi uma criança e também não deu certo. Então eu tive total liberdade para criar o personagem. Eu já tinha a imagem, ele vestia uma roupa meio de piriguete, mas tinha uma maldade grande porque queria destruir todos os outros personagens. E o trabalho teve uma repercussão grande, muito boa. Eu acabei ganhando a votação e depois a Level Up (distribuidora de jogos online) até lançou um vídeo da dublagem oficial.

BP — É muito comum as pessoas reconhecerem a sua voz, pedirem para fazer algum personagem, alguma imitação?
CE — Pedirem para fazer a fala de algum personagem é comum, mas não porque reconheceram a voz, que é algo bem raro. As vezes acontece. O caso mais engraçado foi com um amigo meu, o Sérgio Stern, lá em Fortaleza (CE). Eu e ele dublamos Apenas um Show (desenho do Cartoon Network). Ele foi pegar um elevador e um rapaz de aproximadamente 20 anos segurou a porta para ele. O Sérgio só disse obrigado, aí o rapaz já reconheceu a voz do Mordecai e perguntou se ele era dublador. Aí o rapaz citou ainda outros personagens que o Sérgio tinha dublado e começou a puxar papo. Mas isso é raro de acontecer, principalmente porque ele só falou obrigado.
Já no meu caso, o que mais acontece é que minha mãe sempre fala para o pessoal do mercado que eu dublo o Ben 10. Aí sempre que eu estou indo para a fila o pessoal já começa a sorrir. Mas aí não é porque reconheceram minha voz, é porque minha mãe quem contou, que é o que mais acontece (risos).

BP — Quais características são essenciais em um dublador?
CE — Uma que me ajudou é ser rápido. Diretor de dublagem trabalha muito com a qualidade do trabalho e a velocidade. É muito pouco tempo para apresentar o que a gente viu. Muitas vezes também a gente não sabe o que vai dublar, se é comédia, drama ou terror. Então tem que estar preparado para tudo, para fazer qualquer tipo de interpretação na hora.
Mas diferentemente do que muitas pessoas podem imaginar, não precisa saber inglês ou qualquer outra língua. Nós não precisamos traduzir o texto, ele já vem traduzido. O que precisamos é adaptar para a boca do personagem. Então as vezes tira uma palavra, outras aumenta a frase… Temos de passar aquela ideia que está no texto, mas no tempo do personagem.

BP — O fato de sua mãe já estar dentro do mercado acabou facilitando sua entrada no meio?
CE — Eu tive duas facilidades para conseguir entrar no mercado. Além da minha mãe, que já estava no meio desde os anos 1970, então sabia para quem me indicar, eu tinha uma voz infantil, de menino mesmo. Isso é algo que no meio da dublagem precisa bastante, mas tem pouco, porque a voz dos rapazes começa a engrossar cedo, lá por 11, 12 anos. Como não tem muita criança no mercado e também é difícil conseguir voz infantil, o pessoal me chamava na marra, não tinha muita opção.
Quem começa mais tarde, porém, geralmente tem mais dificuldades para entrar no mercado. Como já tem muita gente no meio, a concorrência é grande. E, claro, os diretores dão preferência por quem já conhecem, como é em qualquer mercado de trabalho.

BP — O mercado de dublagem ainda é muito restrito a São Paulo e Rio de Janeiro, ou outros centros, como o Paraná, vêm ganhando força?
CE — O foco ainda é Rio de Janeiro e São Paulo. Até já vi alguma coisa em outros lugares, cursos e tudo o mais, mas o mercado ainda está concentrado nesses dois estados. Só aqui no Rio tem 15 estúdios. Uma vez, inclusive, apareceu uma menina de Goiás para fazer teste aqui. Ela fez o curso em Goiás, mas veio para cá, porque é onde tem mais trabalho.

BP — Como você analisa a profissão de dublador no Brasil? Dá para viver do ofício?
CE — Então, eu consigo viver dublando, ganho uma média razoável. Como sou freelancer, depende do mês. As vezes passa uma semana inteira sem o telefone tocar, na outra ligam bastante. Tem alguns dubladores, geralmente mais velhos, que são contratados. Minha mãe, por exemplo, era contratada da Herbert Richers.

Experiência na TV foi desgastante

Bem Paraná — Entre os anos de 2000 e 2002, você deu um tempo na dublagem e se dedicou à televisão, participando da TV Globinho/Bambuluá, dos programas Gente Inocente, Brava Gente e da novela Malhação. Por que decidiu não trabalhar na televisão?
Charles Emanuel — De fato, entre 2000 e 2002 dei uma pausa quase total na dublagem e fui trabalhar na TV Globinho. Era muito cansativo, trabalhava direto. Eu saía do colégio e ficava das 14 até as 21 horas no estúdio. Eu não tinha tempo nem para respirar. Fiquei com trauma de TV e foquei só na dublagem.
Outra questão era o reconhecimento. A TV Globinho passava todo dia de manhã e muita criança assistia, então eu ficava em evidência. Mas não gosto dessa coisa de todo mundo toda hora no seu pé. Não podia fazer nada porque era todo mundo cuidando da minha vida. Hoje em dia, não teria saco para ser um ator de novela, por exemplo. Como cresci no meio da dublagem, não me vejo fazendo outra coisa.

BP — Os dubladores estão em evidência no momento. São presença garantida em eventos geeks como o Shinobi Party, aqui de Curitiba, possuem bastante seguidores nas redes sociais e até mesmo aparecem na televisão em entrevistas…
CE — Tudo isso é reflexo do que tem acontecido nas redes sociais. Facebook, Instagram, isso tudo ajudou muito no reconhecimento, por causa do contato com os fãs. No caso dos desenhos do Cartoon, por exemplo, assim que termina o episódio aparece uma voz anunciando com as vozes de tal pessoa e tal pessoa. Daí os fãs procuram nas redes sociais e acabam achando a gente. Então o nosso rosto está aparecendo, e não só a nossa voz, por causa das redes sociais.

BP — Qual a melhor e a pior parte da profissão?
CE — A melhor parte é ter tempo para fazer o que quiser. Como sou freelancer, dublagem é a hora que eu quero. Acho mais tranquilo, não tenho horário fixo. Mas sempre estou com o telefone a postos caso alguém me procure. Sem contar que também me divirto muito dublando. É aquela coisa: trabalhe com o que você ama e não vai ter de trabalhar um dia na sua vida.
Já a parte chata… Acho que não tem nada que eu não goste. Mas já que tem de escolher alguma coisa, acho que seria ter de ouvir ordens dos superiores, dos clientes sobre a troca de palavras, coisas que ficam bobinhas. Tem um cliente, por exemplo, que não deixa a gente falar animal, burro, imbecil, idiota, nojento. Isso tudo é trocado por mané, mas não tem o mesmo peso e a mesma conotação, então as vezes a fala sai meio bobinha. Isso atrapalha e eu fico meio chateado porque as pessoas reclamam, e com razão.

BP — Como é feito o cálculo da remuneração pela dublagem? Existe diferença no valor de acordo com o papel a ser interpretado?
CE — Nós recebemos por loop, como chamam aqui no Rio de Janeiro, ou anel, termo usado em São Paulo. Cada 20 segundos de cena falada é um loop, e cada 20 loops ou anéis contam como uma hora de dublagem. O mínimo que recebemos é por uma hora de dublagem. Então meu colega que foi lá e só falou um oi vai ganhar por uma hora.