O cientista polĂ­tico BolĂ­var Lamounier afirma que divisĂ£o atual da sociedade nĂ£o tem precedente em nossa histĂ³ria. “Esta crise Ă© muito mais perigosa e pode levar a um perĂ­odo razoavelmente longo de conflito.” Ele conclui que o PaĂ­s estĂ¡ diante de uma segunda dĂ©cada perdida. “O que vamos ter, a partir do segundo turno, sĂ£o duas massas antagĂ´nicas muito fortes.” A seguir, trechos de sua entrevista.

O sr. disse que nĂ£o estamos diante de uma polarizaĂ§Ă£o eleitoral, mas de uma onda de desavenças como no perĂ­odo do getulismo. Por que vĂª dessa forma?

Esta crise atual me parece muito mais grave. Naquela Ă©poca, a sociedade estava dividida no plano das elites e das classes altas. NĂ£o havia tanto rancor na sociedade. Hoje, a condutividade atmosfĂ©rica Ă© impressionante. Tem famĂ­lias que nĂ£o se falam mais por razões polĂ­ticas. Parece-me fora de dĂºvida de que a sociedade estĂ¡ dividida de alto a baixo. Qual sociedade? Uma sociedade 90% urbana. Nos anos 1950, era meio a meio. A divisĂ£o da sociedade era intensa, mas no meio urbano. No interior, ninguĂ©m tinha notĂ­cia disso. NĂ£o havia programa eleitoral na TV. Esta crise Ă© muito mais perigosa e pode levar a um perĂ­odo razoavelmente longo de conflitos. É a nossa segunda dĂ©cada perdida. Tivemos a primeira nos anos 1980, causada por razões econĂ´micas, mas nĂ£o havia essa violĂªncia no ar. Estamos perdendo a segunda dĂ©cada com o nosso melhor ativo: apesar da desigualdade social, nĂ£o tĂ­nhamos grandes violĂªncias. Hoje, temos a do crime organizado e um começo de violĂªncia polĂ­tica se esboçando. Se queimarmos esse ativo, aĂ­ a coisa ficarĂ¡ feia.

Essa Ă© a singularidade desse momento?

É a possibilidade de um perĂ­odo longo de conflitos de vĂ¡rios tipos por entrada em cena do conflito polĂ­tico. Queira Deus que nĂ£o haja violĂªncia. Mas, polĂ­tica conflituosa, vamos ter. O que me preocupa mais Ă© que o Brasil nĂ£o se enxerga mais. Ele nĂ£o tem um espelho para se ver. A nossa mĂ©dia de crescimento anual Ă© de 2,5%. Nesse ritmo, vamos levar 28 anos para dobrar a renda per capita atual de US$ 7,5 mil. EntĂ£o, imagine o cenĂ¡rio: crime organizado, endemias, uma polĂ­tica desorientada, ninguĂ©m mais diz coisa com coisa. A vida vai piorar bastante.

A democracia liberal perde legitimidade nas camadas da populaĂ§Ă£o que nĂ£o conseguem enxergar nela um instrumento de melhora de suas vidas?

Sim, perde. NĂ£o hĂ¡ dĂºvida: a prĂ³xima geraĂ§Ă£o, a menos que se adestre e se prepare com mais afinco para trabalhar, vai viver pior. E isso jĂ¡ estĂ¡ acontecendo. HĂ¡ 50 anos, a tecnologia que os trabalhadores mĂ©dios precisavam usar era banal. Hoje, nĂ£o Ă©. O Brasil nĂ£o estĂ¡ estagnado, mas andando para trĂ¡s. O PaĂ­s estĂ¡ em retrocesso. Vou mais longe: ele tem de se convencer de que, talvez, seja impossĂ­vel um dia chegar ao nĂ­vel de distribuiĂ§Ă£o de renda da França ou da SuĂ©cia. Discutimos todas as tolices e sandices – e quero mencionar o programa eleitoral gratuito -, menos o ponto central: que paĂ­s temos possibilidade de fazer a ponto de ter um bem-estar e uma paz compatĂ­veis com o que queremos. Podemos viver bem desde que nos organizemos melhor.

Houve na eleiĂ§Ă£o, alĂ©m da consolidaĂ§Ă£o da desavença, a derrocada do centro, representado pelo PSDB…

O PSDB desapareceu como partido.

O que representa o espaço vago que o PSDB ocupou para o nosso futuro?

Vou pedir licença para ir direto ao ponto: o Brasil hoje nĂ£o tem partidos polĂ­ticos. Tem 30 siglas. Sigla Ă© uma coisa que meia dĂºzia de pessoas vai ao tribunal eleitoral e apresenta um documento, que recebe um carimbo.

Inclusive o PT?

Inclusive o PT. O PT Ă© mais partido que os outros, pois se formou hĂ¡ mais tempo e tem um lĂ­der populista de uma habilidade extraordinĂ¡ria. O PT vive do Lula, e nĂ£o o contrĂ¡rio. Tanto Ă© que uma grande parte da militĂ¢ncia petista Ă© marxista. O Lula nem sabe o que Ă© isso. Provavelmente nĂ£o leu nem as trĂªs primeiras pĂ¡ginas do Manifesto Comunista. Ele Ă© um populista clĂ¡ssico da AmĂ©rica Latina, com uma diferença muito positiva: Ă© esperto. É liso. E pode, com certa credibilidade, nesse momento, fazer o papel de um possĂ­vel pacificador do PaĂ­s, pois nĂ£o temos outro lĂ­der. Temos uma entressafra de qualidade duvidosa. Jair Bolsonaro nĂ£o se apresenta, nĂ£o quer e nĂ£o tem preparaĂ§Ă£o para pacificar o PaĂ­s. Quer botar fogo. Nosso problema partidĂ¡rio Ă© dramĂ¡tico. Nasci democrata liberal e espero morrer democrata liberal. NĂ£o consigo entender como possa funcionar um paĂ­s sem, pelo menos, alguns partidos sĂ©rios.

O sr. menciona a dificuldade associativa no País, como Sérgio Buarque de Holanda. Isso ainda ajuda a entender por que nossa democracia é disfuncional?

Foi bom vocĂª lembrar o SĂ©rgio Buarque de Holanda. Minha geraĂ§Ă£o orientou-se lendo quatro ou cinco escritores. Todos pensavam a mesma coisa: nosso problema sĂ£o os grilhões do passado. O problema era Portugal, o latifĂºndio e a famĂ­lia patriarcal, que impede o desenvolvimento do sentimento de associaĂ§Ă£o. Era o patrimonialismo. Estudamos Celso Furtado, Gilberto Freyre e o Victor Nunes Leal. Mas acho que nos orientarmos por eles hoje Ă© um equĂ­voco. Devemos vĂª-los como o crepĂºsculo do pensamento brasileiro. Hoje nĂ£o vejo ninguĂ©m pensando o Brasil a fundo. Vejo os economistas fazendo matemĂ¡tica assustadora, empresĂ¡rios enfurnados nos escaninhos e a CNBB (ConferĂªncia Nacional dos Bispos do Brasil), que era muito ativa, hĂ¡ tempos nĂ£o diz nada. Ou seja, nĂ£o temos sequer uma elite. O Brasil nĂ£o tem uma elite.

O sr. chegou a classificar os prĂ³ximos quatro anos como de equilĂ­brio do terror. Estamos em uma nova era?

O que vamos ter, a partir do segundo turno, sĂ£o duas massas antagĂ´nicas, ambas muito fortes. Uma Ă© mais viva e outra quer botar fogo no circo.

O sr. parece muito cético.

CĂ©tico nĂ£o, estou desesperado.

TambĂ©m parece discordar da ideia de Max Weber de que a modernidade faria o mundo caminhar em direĂ§Ă£o Ă  racionalidade e Ă  secularizaĂ§Ă£o?

Weber estava completamente errado. O mundo caminhou para dificuldades cada vez maiores. SaĂ­mos da 1.ª Guerra, e ele se tornou cada vez mais perigoso, como nĂ³s vemos hoje na UcrĂ¢nia.

E qual o papel do liberalismo hoje no mundo?

NĂ£o hĂ¡ outro modelo. A RĂºssia e a China nĂ£o terĂ£o capacidade, daqui a 30 anos, de governar em paz os seus respectivos paĂ­ses. Na China, as pessoas que vivem e trabalham na agricultura nĂ£o podem entrar nas cidades grandes sem autorizaĂ§Ă£o oficial. SĂ£o de 600 a 800 milhões de pessoas. A robustez do sistema chinĂªs baseia-se no totalitarismo mais fĂ©rreo de que o mundo jĂ¡ teve notĂ­cia. Por isso, o liberalismo, apesar de abrigar populações menores, Ă© um modelo que pode ter legitimidade e ser aplicado em qualquer paĂ­s.

Inclusive o Brasil?

Nosso destino, se nĂ£o revolucionarmos o PaĂ­s no bom sentido da educaĂ§Ă£o, vai ser uma tragĂ©dia. NĂ£o temos saĂ­da, a nĂ£o ser crescer rapidamente, conservando nosso ativo mais importante, que Ă© uma polĂ­tica civilizada, com concĂ³rdia e formando uma elite com o sentido da vocaĂ§Ă£o de que o Weber falava, de ser exemplo para o PaĂ­s. Do contrĂ¡rio, nĂ£o estarei aqui, mas vocĂªs vĂ£o e seus netos vĂ£o. Azar de vocĂªs. EstarĂ£o lascados.

As informações sĂ£o do jornal O Estado de S. Paulo.