
O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e aliados, marcado para começar nesta terça-feira (2), marca uma mudança de paradigma na forma como as instituições do país lidam com tentativas de ruptura da ordem constitucional.
Especialistas ouvidos pela reportagem apontam que a eventual condenação dos generais Walter Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira e do almirante Almir Garnier – além de um posterior julgamento na Justiça Militar – terá impacto sobre as Forças Armadas e sobre a forma como militares enxergam sua participação na política.
“Esse julgamento quebra um padrão de relacionamento entre militares golpistas e o governo desde que os militares começaram a intervir na política brasileira no século 19, no golpe de Estado que levou à República”, avalia a professora Adriana Marques, coordenadora do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
“É um processo inédito. Nunca houve indiciamento de oficiais golpistas, sobretudo quando houve tentativa malsucedida de golpe de Estado. Antes até se iniciou processo de punição, mas logo houve anistia”, complementa Carlos Fico, professor de história do Brasil da mesma universidade.
Militares
Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa e candidato a vice na chapa eleitoral liderada por Bolsonaro, é acusado de ter coordenado algumas das ações mais graves investigadas na conspiração.
Heleno, ex-titular do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), ficou apontado como um dos responsáveis pela construção da narrativa de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas. O general era considerado o militar-modelo no Exército, um dos raros tríplices coroados. O título cabe aos militares que ocuparam o primeiro lugar nos três cursos mais importantes da formação militar.
Para a Procuradoria-Geral da República, o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio foi omisso e aderiu subjetivamente ao plano.
Já Garnier acabou indicado como o comandante de Força que aderiu à articulação, dando a ela apoio moral e material.
Padrão
Os pesquisadores explicam que o padrão estabelecido ao longo do último século foi o de perdão e de aprovação de anistias para militares que se envolviam em investidas contra governos legalmente constituídos.
Como exemplo, Fico cita a tentativa de levante de militares no âmbito da chamada revolta da vacina de 1904, no governo Rodrigues Alves. Acabou com os envolvidos anistiados.
Em 1956, o presidente Juscelino Kubitschek pediria ao Congresso a aprovação de uma anistia para os fardados da revolta de Jacareacanga, no Pará. Esse movimento tentou depô-lo do poder.
Marques e Fico opinam que há características específicas do momento atual que levaram os oficiais envolvidos ao banco dos réus, com possibilidade de inédita condenação por insurreição.
Para Marques, as mais de três décadas de convivência democrática ininterruptas após o fim da ditadura militar fizeram a diferença. “Se atribui muito o fato de não ter acontecido um golpe porque teve quatro ou cinco generais do Alto Comando do Exército que não toparam. Isso é um dado da situação. O próprio general Heleno disse que não tinha clima para dar golpe. Essa falta de clima é o resultado de uma resistência da sociedade civil organizada, da imprensa, do próprio Legislativo”, avalia.
Fico, por sua vez, destaca o fortalecimento do STF (Supremo Tribunal Federal), da Procuradoria-Geral da República e da Polícia Federal a partir da Constituição de 1988. “Desde 1988 o Brasil tem enfrentado crises graves, com dois impeachments de presidente. Mas esse fortalecimento tem sido fundamental para a condução dessas situações nesses anos”, diz.
Alerta
O resultado do julgamento, marcado para começar na terça-feira (2), pode funcionar como um alerta para a classe militar. Tentativas de subversão da ordem democrática terão tratamento diferente a partir de agora, segundo os professores. A questão da politização das Forças Armadas, no entanto, continuará sendo um desafio.
Para além disso, Marques avalia que será extremamente importante acompanhar o julgamento no STM (Superior Tribunal Militar), que deve ocorrer após a decisão no STF. A corte militar deverá se pronunciar sobre a perda do posto e da patente para oficiais condenados a mais de dois anos de prisão.
Embora o STM não entre nos detalhes da eventual condenação no Supremo e tenha um papel homologatório, dois integrantes do tribunal ouvidos pela reportagem dizem que a eventual condenação de generais de quatro estrelas e um ex-presidente da República pode tensionar a corte militar e gerar discussões sobre o processo.
“Esse julgamento vai nos dizer como as Forças Armadas estão entendendo e interpretando esse processo”, diz Marques.