
A mudança no pagamento de precatórios de estados e municípios, prevista na PEC (proposta de emenda à Constituição) 66, poderá instituir um novo tipo de pedalada para essas dívidas judiciais e ainda permitirá que entes não endividados reduzam o ritmo de liberações, aumentando a espera do credor.
A inclusão de uma transição para acolher os precatórios da União na meta fiscal monopolizou as discussões da PEC no Congresso, mas é a regra para estados e municípios que preocupa advogados, por colocar em risco a expectativa de que esses governos quitem suas dívidas até 2029.
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O Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) deve pedir a derrubada da emenda ao STF (Supremo Tribunal Federal).
Thiago Diaz, presidente da Comissão Especial de Precatórios da OAB, diz que a proposta toda é inconstitucional, pois acaba com o prazo de pagamento e mexe na correção dessas dívidas. Hoje corrigidas pela taxa Selic, em 15% ao ano, elas passarão a ser atualizadas com IPCA (inflação oficial) mais 2% já a partir de agosto.
Em 2021, quando outra alteração na Constituição mexeu nos precatórios, 20 dos 26 estados aderiram a um regime especial de pagamento. Com isso, ficaram obrigados a destinar uma fatia da receita corrente líquida suficiente para quitar, até 2029, seu estoque de precatórios. Entre os municípios, 20% das prefeituras entraram no regime especial. A receita corrente líquida, ou RCL, corresponde ao dinheiro que efetivamente entra nos cofres após descontos obrigatórios.
“É uma reedição ampliada da PEC do calote. Estende-se aos estados e municípios e ainda coloca insegurança jurídica ao mudar o ritmo de pagamento sem estabelecer de maneira objetiva até quando vão ter que pagar”, diz.
Originalmente, a PEC tratava das dívidas de municípios. Mexia na regra de precatórios e abria negociação de dívidas previdenciárias das prefeituras com a União. Na tramitação no Congresso, o alcance cresceu, com amplo apoio de entidades como FNP (Frente Nacional dos Prefeitos) e CNM (Confederação Nacional dos Municípios), essa última patrocinadora do texto original.
Aprovada, a emenda afetará desde os grandes fundos que compram os chamados ativos estressados quanto o cidadão comum que em algum momento processou a prefeitura, o estado ou algum ente público, como fundações e universidades públicas.
A dívida de precatório, diz o presidente da seccional do Paraná da OAB, Luiz Fernando Casagrande Pereira, acaba virando uma homenagem póstuma. São tantos anos até o pagamento, que muitas vezes o beneficiário já morreu.
Essa espera abre margem para o mercado secundário de negociação de precatórios, no qual o credor vende o valor a que terá direito para um terceiro, com deságio em torno de 40%.
“Para quem compra precatórios, o problema é o tempo para pagamento. Ele ia estimar cinco, dez ou 20 anos para receber e isso [o prazo] mexe na precificação do que ele oferta”, diz o advogado Álvaro Arantes, do escritório Dias Carneiro.
No Paraná, o Tribunal de Justiça está pagando neste ano precatórios estaduais emitidos em 2009, mesmo ano das dívidas da Prefeitura de São Paulo. Na capital paulista, há duas filas. A preferencial, que inclui idosos, pessoas com deficiência ou doenças graves, está com o pagamento em dia.
Levantamento da OAB do Paraná aponta que a maioria dos estados acabaria com o estoque em 2029 se mantivesse o ritmo atual de pagamentos e alguns o fariam antes. Entre os municípios, apenas 14% não conseguiriam e seriam obrigados a comprometer mais do que 5% de sua RCL para esses pagamentos.
A Prefeitura de São Paulo é um deles e vive situação curiosa, pois carrega, ao mesmo tempo, um dos maiores orçamentos públicos do Brasil (superando o caixa de estados), e usufrui da classificação de superendividado, segundo definição do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para entes que precisariam destinar mais do que 5% da RCL para quitar os precatórios atrasados até 2029.
Com isso, a cidade consegue manter a destinação de 5%. Isso, até este ano. Se a regra da PEC for mantida, os pagamentos cairão à metade. O estoque que não seria pago em 2029 ficaria a perder de vista.
Vitor Boari da Comissão de Precatórios da seccional paulista da OAB, diz que alteração no ritmo de pagamento ignora a entrada de novas dívidas anualmente, tornando imprevisível quando esses credores receberão. “Já não fechava a conta e agora que não fecha mesmo.”
O prefeito Ricardo Nunes (MDB), de São Paulo, é do mesmo grupo político do relator da PEC na Câmara, o deputado federal Baleia Rossi (MDB-SP), e esteve na comissão especial durante a votação do relatório que depois foi aprovado no plenário.
Procurado, ele não quis comentar. No dia da votação, disse que o pagamento de precatórios compromete o atendimento à população carente. “Quando você concentra muito recurso para pagar precatório, o que também é justo, você gera um desequilíbrio no atendimento à saúde, à educação, à estrutura.” Sobre o crescimento do estoque, afirmou que a nova regra é mais razoável para o equilíbrio fiscal e para o atendimento de políticas públicas.
Para Messias Falleiros, advogado do escritório Sandoval Filho, teria sido mais razoável criar uma nova regra apenas para os que não teriam capacidade de cumprir o regime especial criado há menos de dez anos.
A CNM calcula que a PEC, com as mudanças para precatórios e para dívidas previdenciárias, liberará R$ 700 bilhões dos orçamentos municipais. A entidade diz que as mudanças darão sustentabilidade fiscal aos municípios.
Nas contas de Lucas Zantatta (PL), prefeito de Araçatuba, a alteração reduzirá à metade a reserva orçamentária para precatórios, liberando R$ 30 milhões para outras despesas. “O que é um problema é o percentual não ser uma decisão nossa, tirando qualquer possibilidade de adequar o orçamento”, diz, sobre a regra atual. “Mas entendo a questão dos credores, eles têm o direito de receber.”
Nos estados, a avaliação é parecida. A Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul diz que a aprovação da emenda reduzirá à metade o crescimento da dívida, com a troca do índice de correção, e levará o percentual da RCL a 2%. Segundo o secretário-adjunto da Fazenda, Itanielson Dantas Silveira Cruz, os dois comandos poderão aliviar de R$ 700 milhões a R$ 1,5 bilhão dos caixas do estado.
A PEC traz outras duas mudanças que, para advogados, tornam ainda mais longa a espera dos credores e abrem caminho para estados e municípios que hoje mantêm seus pagamentos em dia passarem a acumular dívida.
A emenda prevê um intervalo percentual entre 1,5% e 5% da RCL para precatórios, variando de acordo com a dívida calculada neste ano. Isso deve acabar reduzindo o ritmo de pagamento de quem estava em dia e destinava, por exemplo, mais do que 1,5%. “É carta branca para acumular dívida de precatório”, diz Falleiros.
A data-limite para um precatório ser incluído no orçamento do ano seguinte também mudará. Hoje, essa data é 2 abril e a emenda antecipa para 1º de fevereiro. A mudança afeta dívidas judiciais federais, estaduais ou municipais.
Com a nova redação da Constituição, só entrariam no Orçamento de 2027 os precatórios emitidos até 1º de fevereiro de 2026, e os casos autuados entre 2 de fevereiro de 2026 e 31 de janeiro de 2027 ficariam para o Orçamento de 2028.
Entenda o que muda com a nova PEC dos Precatórios
COMO FICAM OS PRECATÓRIOS DE ESTADOS E MUNICÍPIOS?
- Desvinculação da Receita Corrente Líquida para o pagamento de precatórios, que hoje varia de acordo com o valor necessário para quitar o estoque em 2029
- Entes terão índices entre 1% e 5% da RCL fixados a partir do estoque de precatórios em 31 de dezembro
- Percentual será revisto em 2036
- Valores serão corrigidos por IPCA (inflação oficial) mais 2% ou taxa Selic, o que for menor
COMO FICAM OS PAGAMENTOS DE PRECATÓRIOS (DÍVIDAS DECORRENTES DE DECISÃO JUDICIAL) DA UNIÃO? - A partir de 2026, as despesas com precatórios saem do teto de gastos do arcabouço fiscal (a regra para as contas públicas)
- A partir de 2027, precatórios passam a contar na meta fiscal de resultado primário das contas públicas maneira escalonada
- A regra de transição prevê 10% dos precatórios na meta a cada ano
- Correção monetária passa a ser pelo IPCA mais 2% ou Selic, o que for meno
O QUE MUDA NA PREVIDÊNCIA SOCIAL? - As dívidas dos estados, municípios e do Distrito Federal com o Regime Geral da Previdência Social poderão ser parceladas
- Parcelamento em até 25 anos
- Correção considera IPCA mais juros reais de 0% a 4%
- Parcela limitada a 1% da RCL mensal média
- Redução de 40% de juros e encargos legais e 25% dos honorários advocatícios da União
O QUE MUDA NO PIS E PASEP? - Receitas dos regimes próprios de previdência não entram na base de cálculo de PIS e Pasep
O QUE MUDA PARA OS FUNDOS PÚBLICOS E O BNDES? - De 2025 a 2030, até 25% do superávit de fundos públicos da União poderão ser usados para o financiamento de projetos estratégicos ou financiamento reembolsável a projetos de enfrentamento à mudança climática. O BNDES é o principal beneficiário porque é o banco responsável pela gestão do Fundo Clima