Uma comissĂ£o de juristas que elabora uma proposta para alterar o CĂ³digo Civil incorporou pontos do PL 2630 das Fake News e revogou um artigo do Marco Civil da Internet no texto que serĂ¡ apresentado ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Um trecho do anteprojeto vai tratar especificamente de Direito Digital e prever tambĂ©m a possibilidade de incluir redes sociais em testamento e apontar critĂ©rios para a inteligĂªncia artificial criar imagens de pessoas mortas.

O CĂ³digo Civil Ă© um conjunto de normas que impactam o dia a dia dos cidadĂ£os brasileiros, como, por exemplo, regras sobre casamento, divĂ³rcio, herança e contratos. A atual legislaĂ§Ă£o foi sancionada em 2002 e entrou em vigor no ano seguinte, em substituiĂ§Ă£o Ă  lei anterior, de 1916. AtĂ© 2023, o Congresso havia feito 63 alterações no CĂ³digo Civil. A proposta de mudanças dos juristas Ă© ampla e sugere mais de mil revisões e atualizações na lei.

“O CĂ³digo Civil Ă© o diploma que rege a vida do cidadĂ£o comum, rege toda a nossa vida em sociedade. NĂ³s temos um cĂ³digo que, embora ele tenha pouco mais de 20 anos, a comissĂ£o que elaborou essas primeiras regras Ă© de 40 anos atrĂ¡s”, afirmou o presidente do grupo e ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luis Felipe SalomĂ£o, ao EstadĂ£o.

“Nesse meio tempo, a sociedade mudou muito. Houve impactos da tecnologia que transformaram todas as relações jurĂ­dicas. Contratos, reproduĂ§Ă£o assistida, direito digital. É preciso, e todos os paĂ­ses do mundo estĂ£o fazendo isso, adaptar as legislações, atualizando seus preceitos para proteĂ§Ă£o de dados, para essa vida que migra do analĂ³gico para o digital.”

A comissĂ£o com 38 juristas foi instituĂ­da por ordem de Rodrigo Pacheco, em agosto do ano passado, e instalada em setembro. O prazo de encerramento dos trabalhos Ă© na sexta-feira, 12. Uma das inovações apresentadas pela comissĂ£o Ă© a inclusĂ£o de um livro sobre Direito Digital no CĂ³digo Civil. Em vez de os temas ligados Ă  tecnologia entrarem na legislaĂ§Ă£o em capĂ­tulos prĂ©-existentes, por sugestĂ£o de SalomĂ£o, eles vĂ£o compor um Ăºnico mĂ³dulo.

“Desde Roma, o Direito Civil Ă© dividido em livros. VocĂª tem o livro das obrigações, de contratos, de sucessões e assim por diante”, explicou o advogado e integrante da comissĂ£o, Ricardo Campos. “Como a vida e a economia migraram para o meio digital, ter um livro de Direito Digital Ă© muito importante. A internet virou centro de tudo.”

Campos Ă© professor da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha) e especialista nas Ă¡reas de proteĂ§Ă£o de dados, regulaĂ§Ă£o de serviços digitais e direito pĂºblico. Ele Ă© um dos autores das sugestões do livro de Direito Digital. A proposta pretende, por exemplo, revogar o artigo 19 do Marco Civil da Internet que trata da responsabilidade das plataformas digitais. O trecho prevĂª que as empresas sĂ³ podem ser punidas por conteĂºdos “nocivos” gerados pelos usuĂ¡rios se, apĂ³s uma ordem judicial especĂ­fica, nĂ£o tomarem providĂªncias.

Os juristas propõem que as empresas poderĂ£o ser responsabilizadas administrativamente e civilmente por danos causados por conteĂºdos de usuĂ¡rios distribuĂ­dos por meio de publicidade nas plataformas. Este trecho consta do PL das Fake News. TambĂ©m hĂ¡ possibilidade de puniĂ§Ă£o Ă s empresas por danos provocados por conteĂºdos de usuĂ¡rios quando houver “descumprimento sistemĂ¡tico” de deveres e obrigações previstas no CĂ³digo Civil.

O artigo 19 Ă© discutido em uma aĂ§Ă£o que corre no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro da Corte Dias Toffoli liberou o processo para a pauta no ano passado. Em maio do ano passado, em meio Ă  discussĂ£o sobre o PL das Fake News na CĂ¢mara, a entĂ£o presidente do STF, Rosa Weber, adiou o julgamento da aĂ§Ă£o.

Outros pontos da proposta dos juristas vĂ£o ao encontro de artigos do projeto de lei das Fake News. Os juristas sugerem, por exemplo, que os termos de uso das plataformas tenham linguagem de fĂ¡cil compreensĂ£o, pedem que as redes criem mecanismos eficazes de reclamaĂ§Ă£o e de verificaĂ§Ă£o da idade de crianças e adolescentes e proĂ­bam direcionamento de publicidade para este pĂºblico – temas que constam no texto de relatoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP).

A proposta de alterar o CĂ³digo Civil foi criticada pelo ministro do STF Dias Toffoli. “É difĂ­cil ter segurança jurĂ­dica em um paĂ­s que a cada 20 anos cria comissĂ£o no Congresso para rever o CĂ³digo Civil, nĂ©?”, disse o ministro durante uma sessĂ£o do plenĂ¡rio da Corte, na quarta-feira, 4.

Entre 1º e 5 de abril, a comissĂ£o discutiu, alterou e votou pontos do relatĂ³rio que reĂºne todas as propostas de mudança. O livro sobre Direito Digital foi aprovado por unanimidade e sem emendas.

Com quem fica o Instagram de alguém que morreu? E milhas aéreas?

Um dos capĂ­tulos do livro sobre Direito Digital sugerido pela comissĂ£o trata do patrimĂ´nio que uma pessoa constrĂ³i no ambiente virtual. O mĂ³dulo inclui, por exemplo, dados financeiros, senhas, contas de redes sociais e de jogos cibernĂ©ticos, fotos, vĂ­deos, criptomoedas e milhas aĂ©reas.

“A transmissĂ£o hereditĂ¡ria dos dados e informações contidas em qualquer aplicaĂ§Ă£o de internet, bem como das senhas e cĂ³digos de acesso, pode ser regulada em testamento”, propõe o grupo.

Segundo Ricardo Campos, uma conta com 20 milhões de seguidores em uma rede social, por exemplo, pode valer atĂ© mais do que um imĂ³vel. “Se um apartamento vocĂª pode botar no testamento, vocĂª nĂ£o vai colocar uma conta de rede social? NĂ£o faz sentido”, disse. “A gente procurou regular relações, novas formas patrimoniais que sĂ³ existem se existir a internet.”

Outro trecho da proposta dos juristas estabelece critĂ©rios gerais para uso de inteligĂªncia artificial em caso de pessoas mortas. No ano passado, uma campanha publicitĂ¡ria juntou a cantora Maria Rita e a mĂ£e, Elis Regina – morta em 1982 – e provocou discussões sobre o uso da tecnologia.

O livro sobre Direito Digital estabelece cinco condições para “a criaĂ§Ă£o de imagens de pessoas vivas e falecidas por meio de inteligĂªncia artificial”. Por exemplo, obtenĂ§Ă£o prĂ©via e expressa de consentimento da pessoa e “respeito Ă  dignidade, Ă  reputaĂ§Ă£o e ao legado da pessoa natural representada”. Segundo a proposta, a criaĂ§Ă£o de imagens nĂ£o deve ser difamatĂ³ria, desrespeitosa ou contrĂ¡ria ao modo de ser ou de pensar da pessoa retratada.