— Você é uma boneca.


— Não, não sou.


— Eu acho você uma boneca. Você é linda como uma boneca. Você não acha uma boneca linda?


— Não, não acho. Só se for a boneca branca.
— Por quê?


— Tenho uma boneca branca e uma preta. A preta é feia. Só a branca é bonita. Uso a preta para assustar minha irmãzinha.


 


O diálogo reproduzido acima ocorreu na semana passada, dentro de um consultório numa cidade do interior do Paraná. Foi contado a mim pela própria médica.


 


Dias atrás a Câmara dos Deputados organizou um seminário intitulado “A libertação incompleta”, para debater a data de 13 de maio, que esta semana completa 120 anos. Faz doze décadas que a princesa Izabel sancionou a lei de número 3.353/1.888, que “declara extinta a escravidão no Brasil”.


 


A lei tem somente dois artigos: “Artigo 1° – É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil. Artigo 2° – Revogam-se as disposições em contrário.”


 


Logo abaixo desses dois artigos, a lei manda “a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contem”.


 


Existe, no país, um dito popular segundo o qual algumas leis são boas e necessárias, mas que não são cumpridas, ou seja, não “pegam”. A Lei Áurea, como ficou conhecida a lei 3.353, “pegou”? Extinta a escravidão, o que fez o Estado brasileiro para atender as necessidades e direitos da população negra do Brasil?


 


Manda a lei que todas as autoridades cumpram e façam cumprir o que ela contém. Porém, boa parte das autoridades civis e eclesiásticas do Brasil tinha escravos. E o próprio império não ofereceu as condições para a aplicação da lei, o que, é claro, dificultou a plenitude de sua execução.


 


É creditada a Otto von Bismarck, que governou a Prússia de 1862 a 1890, a seguinte frase: “Ah, se as pessoas soubessem como se fazem as leis e as salsichas”. Como Bismarck era autoritário, provavelmente quis dizer que as pessoas não comeriam as salsichas e não cumpririam as leis.


 


Não sei como são feitas as salsichas. Mas as leis, sim. Assim como também sabiam os que fizeram a Lei Áurea. Sabiam quais os pressupostos para que a lei em questão pudesse ser cumprida, ou seja, que “pegasse”?


 


Para uma lei “pegar”, é necessário, em primeiro lugar, que todos e todas tomem conhecimento dela. No caso específico, o escravocrata e o escravo (isto parece que ocorreu). Também é necessário que a mesma seja reconhecida pelos que por ela lutaram (algumas setores do movimento negro não a reconhecem até hoje).


 


É preciso ainda que puna quem não a cumprir (não sei se alguém, algum dia, foi punido por não cumpri-la). No caso da Lei Áurea, ainda era necessário que condições fossem dadas para que a libertação fosse completa.


 


Na época, o império já estava no início do seu ocaso, em crise de legitimidade. Mesmo que quisesse, teria muitas dificuldades para colocar em prática uma política de acesso à terra, de educação e de garantia aos direitos civis e políticos dos recém-libertos. Por essa razão e pela falta de interesse da elite política e econômica do Brasil —demonstrada até hoje—, nada disso foi cumprido. Por isso, a libertação ainda é incompleta.


 


O processo educativo e cultural é falho até hoje. Os negros libertos não tiveram acesso à educação. Os brancos, sim, de forma incompleta na extensão e na qualidade, tanto que ainda permanece um profundo preconceito, quando não posições racistas, mesmo sem existir mais o conceito de raça.


 


O diálogo entre a médica e, segundo ela, uma menina moreninha, mesmo com uma política de discriminação positiva (incompleta) implementada pelo atual governo brasileiro, vamos voltar a ouvir, ainda, por um longo tempo no país. O diálogo é resultado de uma libertação incompleta, de uma Lei Áurea que não “pegou”.


 


 


Dr. Rosinha, médico, é deputado federal (PT-PR)
e vice-presidente do Parlamento do Mercosul.
[email protected]
www.drrosinha.com.br