O impeachment ilustra bem o duplo processo de abstração da prática jurídica. Esse processo consiste, primeiro, em não lidar com pessoas concretas e problemas reais, mas com a configuração jurídica dessas pessoas e de suas condutas. O direito não se preocupa com pessoas de verdade, mas com qualificações (alimentando, contribuinte) e com significados normativos (trabalhista, criminal) de condutas (furto, inadimplemento). Essa astúcia da razão dogmática (Ferraz Jr.) elimina o problema de enfrentar as angústias da realidade. Alivia o profissional enquanto desumaniza o direito. Segundo, a prática jurídica é um jogo linguístico e simbólico submetido às regras que podem ser quebradas, reinterpretadas e redimensionadas no decorrer do próprio jogo, desde que isso seja feito dentro dos limites flexíveis de racionalidade argumentativa aceitos pela comunidade jurídica. Isso elimina, na aparência, os motivos reais das alegações e das decisões: elas se justificam se sustentadas em argumentos juridicamente aceitáveis, independentemente da sinceridade com que os argumentos são lançados ou dos motivos dos operadores do direito.
A arte e técnica de manejar essa prática fazem o profissional de sucesso. Mesmo hábil, porém, o jurista é levado por essa trama a agir contra suas convicções. O jurista faz o direito e o direito faz o jurista. Isso confunde e agride o senso de justiça, distanciando direito, justiça e cidadania.
O impeachment é curioso. Como, no duplo processo de abstração, não interessa a realidade concreta, mas sua qualificação jurídica e como essa qualificação é manipulada conforme cânones jurídicos, argumentos como é incompetente, enterrou o país na crise, não sabe dialogar, de um lado, ou é honesta, não tem conta na Suíça, é vítima das elites, de outro lado, presentes no discurso social do impeachment, são neutralizados no discurso jurídico. A complexidade da vida é abstraída na figura do crime de responsabilidade e na subsunção das pedaladas e decretos conforme argumentos e institutos jurídicos. Esse jogo substitui a realidade político-socioeconômica subjacente, com todos seus interesses, preconceitos, vontades, ressentimentos etc. É como se ninguém quisesse o poder, ninguém fabricasse crises, ninguém quisesse derrotar o adversário; todos quisessem apenas averiguar se houve crime de responsabilidade e dizer, com razão, culpada ou inocente. O direito existe e opera nesse curioso e fantasioso mundo do como se: conscientes ou não, todos se comportam como se não tivessem motivos e fossem exclusivamente racionais e objetivos, em vestes talares e, às vezes, perucas.
Pior: no impeachment, o julgamento não é feito por juristas, mas por políticos, misturando ao discurso jurídico os elementos que o direito aprendeu a esconder. O que normalmente ficaria velado aflora, o dever-ser confunde-se com o ser e todos ficamos ainda mais confusos.
André Folloni, Doutor em Direito, Professor do Mestrado e Doutorado em Direito da PUCPR