Eu não recebo Bolsa Família e a falta de empatia com as mães pobres

Redação Bem Paraná

Mãe pobre, mas pode chamar só de mãe

Ser mãe não é fácil. É cansativo, é estressante e é um fator de exclusão social e econômica. Se você é mãe, provavelmente sabe disso tudo, não é? Você sentiu no saldo da conta o quanto é caro ter um bebê. Já deixou de ser chamada pra eventos sociais, ou viu o quanto as pessoas se sentem incomodadas com peito, com fralda, com vômito e outras coisas comuns do dia a dia com uma criança. Já se angustiou quando a criança ficou doente e você teve que ligar para o chefe para avisar que não vai poder trabalhar porque não há quem fique com o bebê.

Apesar de tudo isso você é uma boa mãe. Fez escolhas, abriu mão de muita coisa em nome das crianças e da família. Se tornou uma profissional mais eficiente e mais dedicada e deu conta de tudo. Até mesmo de ir além do esperado, emendando a gravidez com a pós-graduação, as aulas de idiomas e a dedicação a todo tipo de oportunidade ofertada pela empresa.

Nada do que você tem foi dado de mão beijada. Afinal você trabalha muito. Sacrifica o tempo que poderia estar com as crianças para que elas tenham o que precisam. Poderia ser mais fácil se seu emprego pagasse um pouco melhor, se as horas de trabalho não fossem tão longas, se o marido fizesse a parte dele no cuidado com a casa e os filhos, se a vida não fosse tão cara e se você pudesse contar com a ajuda da família.

No entanto, você é guerreira. Sempre foi, não é? Enquanto os outros saiam para festar você estudou, ajudou em casa, trabalhou para pagar o curso de inglês. Toda a sua vida seguiu o script correto. Você estudou, se formou, batalhou aquele emprego bacana. Você nunca foi de esbanjar nada. Desde o primeiro contracheque cuidou direitinho das finanças, separou aquele dinheirinho para comprar um carro e dar de entrada na casa própria.

Quando engravidou, você já estava com uma vida profissional estável, a casa própria garantida, o carro pago e o marido. Porque você nunca, jamais considerou engravidar fora do casamento, né? Desde que começou a transar você foi extremamente cuidadosa com o anticoncepcional e ainda sempre exigiu camisinha, mesmo quando o namorado, marido, ficante insistiram para transar sem “por é muito mais gostoso”.

Não era gostoso, né? Porque você tinha era pavor de engravidar e ser como as outras, aquelas que ficaram para trás com um filho no colo ao invés do diploma na parede. Deusmelivreeguarde de “dar o golpe da barriga”, como tantas outras. Não, você é guerreira. Você não quer nada de ninguém. Tudo que você tem é resultado direto do teu trabalho.

Apesar daquela promoção não ter saído, apesar de você ter se divorciado e do ex-marido não pagar a pensão, apesar da maior parte do teu salário ir para pagar a creche, o médico e as roupas das crianças, você não pede esmola nem usa tua situação para receber arrego de ninguém. Não, você trabalha muito, você não deve nada para ninguém.

Você não é como as outras mães. Aquelas do “golpe da barriga” que vivem da pensão. As que são sustentadas pelos pais. As que recebem Bolsa Família. Não, você não é vagabunda. Você trabalha. Muito.

Pois é, o problema é que não é bem assim, né?

Primeiro porque você sabe que, assim como te julgam sem te conhecer, sem pagar as tuas contas, você não deveria julgar as outras mães. “Ah, mas ela recebe Bolsa Família”. Pois bem, vamos lá. O Bolsa Família é um programa de transferência de renda para pessoas na extrema pobreza e na pobreza. Do ponto de vista econômico, isso significa pessoas com renda mensal por pessoa de até R$ 85 (extrema pobreza) ou até R$ 170,00 (pobreza). R$ 85 reais por pessoa, por mês. Pensa nisso por um momento.

“Ah, mas a minha vida também não é fácil”. Verdade. Mas existe difícil e existe quem vive o mês com R$ 85,00. E não é só isso: quem vive na extrema pobreza, em geral, mora em lugares com menos estrutura, em casas nem sempre adequadas (em termos mais claros: casas com frestas, sem piso, sem coleta de esgoto, sem nenhum tipo de aquecimento e que, quando chove inunda ou tem goteiras), e não tem nenhum tipo de poupança ou bem.

Não entendeu? Bom, vamos traduzir: isso quer dizer que mães pobres não tem carro pra vender nem casa própria e que quando elas ficam sem dinheiro, não existe a quem nem a o que recorrer. Pobre não tem limite do cartão nem cheque especial. Ou seja, quando não tem dinheiro não tem comida, não tem remédio, não tem casa. As pessoas passam fome e elas vão pra rua, porque mesmo os barracos mais insípidos custam dinheiro.

“Ah, mas ela engravidou porque quis”. Bom, pode ser. As pessoas são livres para tomar decisões sobre a própria vida. Mas quando você atribuiu os infortúnios da mãe pobre a decisão dela de engravidar você quer dizer que gente pobre não deveria ter filhos? Ou, indo mais longe, que não deveria transar (porque, sabe, quem transa, mesmo que tomando cuidado, pode sempre engravidar. Como a Tia Maroca dizia, a única forma 100% segura de não engravidar é não transar)?

No passado esse tipo de pensamento era tão, tão forte que existem dezenas de relatos de esterilização de pobres em todo o mundo. Aconteceu no Peru do Fujimori, na Índia e já foi sugerido inúmeras vezes no Brasil (uma delas por um dos filhos do Bolsonaro). (Alerta de correção: a versão original dizia equivocadamente Chile onde está escrito Peru).

O problema é que forçar uma população inteira a não ter filhos é um desrespeito a um princípio constitucional: o de que todos somos iguais. Chato, né? #ironia

Mas já que estamos nesse papo, isso é também corroborar uma cultura que sempre culpa a mulher “por querer engravidar”. Como se ter filhos fosse algo pertencente só as mulheres. Mas não é, né? E isso acontece com todas as mulheres, seja com sua amiga classe média que engravidou na faculdade, seja com a outra amiga que se divorciou depois que os filhos nasceram e o com a mãe pobre.

Ou seja, quando você fala que “não recebe Bolsa Família” tá dando uma baita cusparada na própria cara, né? Porque tá respaldando todas aquelas pessoas que também te culpam por “não ter segurado o marido”, “por ser a ex-mulher louca que quer pensão”, “por não querer trabalhar mais 100h por semana depois que os filhos nasceram”, “porque se largou depois da gravidez”, e sabe-se lá mais que outra culpa as mulheres precisam carregar.

Sim, a sua vida não foi fácil. Olha, mas a de ninguém é. Mas ela podia ser melhor, não? Pra todas nós.

Existe outra razão para você parar de implicar com as políticas públicas de auxílio a famílias pobres: elas não tem como objetivo ajudar os adultos. Elas são pensadas para as crianças. Sim, o Bolsa Família não é para a fulaninha que você acha que deu o “golpe da barriga”. Ele é para o filho da fulaninha que talvez, graças aos R$ 85,00 mensais do programa (sim, R$ 85. Pense nisso) não vá ter desnutrição e coma pelo menos uma refeição por dia.

“Ah, mas não pode dar o peixe, tem que ensinar a pescar”. Bom, crianças pequenas são incríveis, mas elas não sabem pescar e não vão aprender tão cedo. Também fica bem difícil caçar a própria comida desnutrido, né? #ironia.

Sabe, acho que, no fundo, essa crítica insistente de mães contra mães é fruto de algo maior e pior: nós mulheres somos criadas para competir umas com as outras. A gente se mede o tempo todo, né? Eu sou mais bonita que a fulana, sou mais rica, meu marido é melhor. Talvez venha daí a necessidade de dizer que alguém é pior, que não merece nada, nem atenção, nem solidariedade.

O problema é que nós, mães classe média, entendemos as angústias e o sofrimento das mães pobres. E nós temos a voz e o poder político e econômico para ajudá-las. E isso vai nos ajudar também. Nós também queremos creches boas para nossos filhos e que não custem um rim. Nós também queremos uma licença maternidade decente e licença paternidade também, pra que os homens, desde o nascimento do bebê, dividam as tarefas conosco. A gente quer que o mercado de trabalho ofereça condições decentes de trabalho para mães e pais, com possibilidade de carga horária reduzida e trabalho remoto.

Não ser solidária com quem tem filhos e é pobre é reforçar um sistema que explora e agride quem é mais fraco. Mas nada de bom deriva disso. Por que não podemos juntas construir um mundo melhor? Vamos juntas?