Minha filha sobreviveu porque a humanidade foi maior que a burocracia

Redação Bem Paraná

O triste desfecho da tragédia do bebê de apenas 47 dias Davi Lucas Alves, que morreu porque não conseguiu vaga em uma UTI em Curitiba me fez voltar no tempo. Na entrevista, a mãe do pequeno Davi contou que a ambulância do Samu ficou horas rodando com o bebê doente porque não havia vagas em UTI  na cidade. Quando finalmente uma vaga apareceu no Hospital Vita, foi exigido um depósito em dinheiro de R$ 65 mil (isso de madrugada). Na mesma entrevista, ela citou o nome da pessoa  da Secretaria de Saúde que não autorizou o internamento no hospital particular por considerar que o estado da criança não era tão grave. E se a tal pessoa da secretaria tivesse autorizado o internamento de Davi? E se o responsável pelos internamentos no Vita tivesse sido mais “proativo” ou benevolente e permitisse o internamento para que depois fossem definidos os acertos da transação comercial? E se a burocracia não fosse maior que a solidariedade? Davi estaria vivo? Não sei, mas certamente a mãe teria a certeza de que a sociedade e poder público fizeram tudo que podiam pelo seu menino tão esperado.

Ao ouvir o relato emocionado e cheio de detalhes da mãe em um programa de TV logo me lembrei daquele 13 de junho de 2001 e não pude me omitir de escrever esse texto. Minha Maitê, hoje com 13 anos, só está viva, porque tivemos a sorte de encontrar naquela noite as pessoas certas que sabem que o valor da vida está acima de tudo, qualquer cheque e qualquer lista.

Depois de ter o diagnóstico errado de virose pela manhã, ela, que tinha 11 meses, piorou durante tarde. Quando meu marido chegou em casa e percebeu que algo estava muito errado. Ela estava gelada e com o lábio roxo. Correu para o Hospital Pequeno Príncipe, onde diante de uma fila imensa mesmo sendo plano de saúde, implorou que alguém olhasse para ela. “O que ela tem?”, perguntou uma atendente. “Se eu soubesse, não estaria aqui. Ela está caída, estranha, a febre baixou bruscamente de repente”, explicou. “Vai ter que esperar aí..”,  respondeu com desdenho. Meu marido não sabe bem ao certo o que o motivou, mas com um conselho da minha sogra, seguiram para o Hospital São Vicente que na época tinha plantão de pediatria.  A fila era menor, mas existia. Meu marido, minha sogra e meu sogro sentaram ali desolados (eu até então nem sabia o que acontecia, porque estava trabalhando). O pediatra de plantão,  doutor Márcio Jhonsson, então passou por eles e logo voltou. “Vamos passar esse caso na frente, a bebê não está bem”, disse ele. Maitê estava entrando em septcemia. Pelos sintomas, era meningite meningocócica. O médico não esperou o resultado do exame, entrou com a medicação e pediu para que rezássemos, porque o caso era grave. A indignação era muita, afinal eu tinha levado ela de manhã duas vezes na pediatra, no outro hospital fomos maltratados.  Mas era só o começo.

Era preciso colocá-la em isolamento, monitorá-la para que o tratamento tivesse efeito e ali no Hospital São Vicente não havia UTI  infantil. E já naquela época, em 2001, não havia vaga em UTI e nem em quarto de isolamento infantil em nenhum hospita de Curitiba.. Assim como a mãe do Davi contou que os funcionários do Samu ligavam para vários hospitais, nós ali no São Vicente nos revezávamos no telefone em busca de uma vaga. Eu mesma liguei para um hospital em Araucária tentando vaga para a transferência, falei com umas dez pessoas no Pequeno Príncipe. Foram duas horas de agonia, enquanto ela estava ali tão pequena na maca do atendimento sem reagir, sem nem sorrir quando eu chamava seu nome.

Até que a chefe de enfermagem se levantou – me culpo por não me lembrar o nome dela, mas me lembro do seu rosto, seu cabelo, sua voz – e disse: “Chega disso, essa criança precisa receber o tratamento adequado. Vamos isolar o quarto tal perto da UTI, criar um corredor só para ela, colocar o monitoramento”, explicou. Alguém questionou: “Mas não temos berço, porque já temos duas crianças internadas?”. A enfermeira chefe retrucou: “Ela vai ficar na cama, a mãezinha vai cuidar dela e ficar lá dentro com ela. Não é mãezinha, até conseguirmos o berço adequado?”. Claro que eu ficaria. Outro disse: “O diretor amanhã não vai gostar…”. Ela respondeu: “Com o diretor, eu resolvo amanhã”.

Enquanto providenciavam o isolamento, fui cuidar da papelada. Fui informada que enquanto o plano de saúde não autorizasse o procedimento, já que não era usual porque o hospital não teria leito de isolamento, eu teria que fazer um depósito caução de R$ 20 mil em dinheiro ou transferência, o que na época era impossível para os nossos padrões. Eu respondi, aos prantos, que depósito naquela hora não conseguiria, mas que poderia deixar um cheque caução, enquanto levantava o dinheiro com amigos. A mulher olhou para mim e disse: “Deixa para lá, se o plano não autorizar a gente vê o que faz. Foi isso que ouvi vocês falando ali!!”.

Maitê ficou longos 20 dias ali no Hospital São Vicente. O berço nunca veio, mas eu fiquei ali segurando suas perninhas e bracinhos para que quando se virasse o catéter não saísse das veias. Contra todos os prognósticos, o antibiótico fez efeito, ela foi reagindo e venceu a batalha naquele quarto improvisado com o carinho das enfermeiras, dos médicos. Como o previsto, o plano de saúde cobriu tudo, mas se não tivesse coberto, daríamos um jeito de juntar o dinheiro e pagar, como tenho certeza que os pais de Davi Lucas teriam feito.

E se o médico não tivesse visto nossa Maitê na fila com os lábios roxos? E se a enfermeira-chefe não tivesse autorizado aquele isolamento UTI ali e se a mulher do caixa tivesse batido o pé no depósito dos R$ 20 mil? Será que minha Maitê estaria viva? Ela não venceu somente os prognósticos médicos, mas venceu a burocracia e as falhas do poder público graças à humanidade das pessoas que podem ter arriscado seus empregos para salvá-la.

Pela entrevista da mãe de Davi Lucas, muita gente tentou salvar a vida dele. Médicos, enfermeiros e socorristas fizeram de tudo para conseguir uma vaga para ele, mas não foi o bastante para quebrar os protocolos e nem a burocracia de uma canetada.

Desejo de todo coração força para a família de Davi Lucas e admiro a postura de colocar o assunto na mídia. É preciso falar sobre isso para que a vida não seja mais colocada de lado diante de protocolos.