Crônica de uma testemunha na tragédia no Rio Grande do Sul (Juju Maracajá)
Água até onde a vista alcança. Silêncio, quebrado apenas pelo chafurdar, pela altura dos
joelhos. Já baixou bastante.
No caminho, flutuam a batata doce e o abacaxi, fugidos desesperados de alguma fruteira,
pensando se haverá terra à vista.
Dentro da casa, a sopeira à deriva nem sabe onde vai aportar. O copo de cristal,
desgarrado, após ter escapado pela janela que se quebrou, navega junto ao portão sem
saber se vai ou se fica.
O cheiro é de morte, destruição, bem como os sentimentos.
A cadeira e a mesinha afogadas na piscina. A banqueta agarrou-se na borda da
churrasqueira, tentando não ser arrastada pela correnteza; pelo menos se salvou.
Tudo se foi,mas está tudo ali, revirado, destruído. A história desmontada do que foi um dia
um lar.
Agora é esperar. Esperar o tempo da água.
O tempo da água baixar para recomeçar, reconstruir, refazer.
Refazer conceitos, ideais.
Refazer e repensar.
Repensar o quanto somos arrogantes, achando que dominamos tudo: a terra, os rios, o
mar, o céu e até o infinito. E que tudo está simplesmente a nosso dispor, como um fim em
si.
Está na hora de começar a corrigir tudo de errado que fizemos até agora.
E que hoje seja melhor do que ontem.
E que o amanhã seja melhor do que hoje.