
Este post traz a estreia de Rafaela Tavares na crítica teatral. Gênero literário super “pop” no século 19 e início do século 20, a crítica passou por muitas transformações e hoje é feita só por corajosos. Opinar hoje em dia pode ser delicado, quando palavras são setas afiadas que podem bater nos muros da incompreensão. Mas ainda há quem se aventure em coisas novas. Então, vamos à crítica de “Outros”, por Rafaela Tavares!
A música introduz e encerra o espetáculo “Outros”, apresentado no domingo (6) no Teatro Guaíra, em Curitiba, finalizando a turnê sul do Grupo Galpão de Belo Horizonte. É no canto e na instrumentalização melódica que a polifonia dos dez atores sobre o palco traduz melhor uma noção de alteridade. Nos números musicais, é perceptível a interdependência entre o “eu” e o “outro”. Eles se complementam. Versos encontram respostas e aceitação.
Segunda montagem do Grupo Galpão dirigida por Márcio Abreu como uma sucessora à peça “Nós”, o espetáculo utiliza as linguagens teatrais para falar sobre as inquietações contemporâneas. As preocupações políticas, como questões de gênero, por exemplo, estão evidentes nos versos cantados. São levantadas e recebidas nas trocas verbais entre os atores e atrizes.
Há, porém, um contraste entre essa comunicação harmoniosa das cenas cantadas e os diálogos cheios de ruído dos atos não musicais. Os personagens ainda buscam ao outro quando disparam reflexões sobre memória, envelhecimento, morte, incômodos, passado, agora e futuro.
As frases são jogadas ao ar e só não se desmancham por encontrar absorção no público. As múltiplas inquietações manifestadas pelos personagens são ora ignoradas por seus interlocutores em cena, ora tratadas como réplicas que revelam um desentendimento.
A pluralidade de ideias, medos líquidos, memórias dissonantes reflete uma diversidade atual, também extravasada na peça nos desencaixes dos diálogos. É difícil não associar a confusão entre os personagens às discordâncias e incompreensões do mundo de hoje, que não raro beiram ou resultam em conflito.
No espetáculo, os outros não são só aqueles com quem se conversa em uma procura – geralmente frustrada – de complacência, eles são também o assunto das conversas, são corpos tocados em valsas cujos passos são ditados por uma terceira pessoa, como se para destacar uma sociedade desorientada que se debruça em uma necessidade de instruções.
Há uma ânsia pelo outro reconhecível nos movimentos dos atores e atrizes quando contracenam com colegas de palco. Essa fome de contato físico traz uma contradição em relação ao individualismo presente na dessimetria de ideias nos diálogos, um paradoxo que também evoca a dicotomia entre carência e egocentrismo que gera tantas angústias na contemporaneidade. A busca pelo toque atinge o ápice no clímax do espetáculo, quando os corpos dos intérpretes se unem e se confundem, para no fim se afastarem com um leve estranhamento.
Se a palavra é matéria-prima para o grupo ativo desde 1982 abordar a instabilidade atual, ela não é a única linguagem dominada pelos atores, atrizes e diretor. O movimento dos atores combinados com a iluminação comprovam esse domínio. O trabalho e corpo e a luz criam um caos controlado no palco capaz de atordoar sobretudo quando mostra repetições, uma forma de abordar o momento de transição em que vivemos, no qual reprisamos estruturas e pensamentos com quais talvez devíamos romper, porém aos quais não desapegamos e passamos a patinar no mesmo lugar. O espetáculo “Outros” não é panfletário, mas suas linhas e entrelinhas falam do hoje de forma política.
É interessante que apenas na música haja um acordo entre personagens. Dificilmente se trata de uma coincidência. A mensagem que ressoa ao fim da montagem é que somente na arte a sociedade encontra ecos e resposta para as suas inquietações. Basta se permitir parar para performar ou ouvir.